Calígula, na verdade, não era tão mau

Nova biografia do terceiro imperador romano, escrita pelo historiador Stephen Dando-Collins, desmonta alguns mitos em torno do personagem, sinônimo de poder depravado e brutal

Busto presumido como uma representação do imperador Calígula, feito pelos irmãos Giovanni Battista e Nicola Bonanome por volta de 1562.Museo del Prado

Reinou por apenas quatro anos, entre 37 e 41 d.C., e morreu despedaçado pela Guarda Pretoriana aos 29. Seu tio e sucessor, o imperador Cláudio, bem que tentou apagar sua memória, fundindo moedas com sua efígie, decapitando estátuas, revogando suas leis. Mas é evidente que não conseguiu. Se há um nome da antiguidade romana que ecoa na atualidade como sinônimo de depravação, mas também de fascínio pelo poder, é o de Calígula, apelido pelo qual detestava ser conhecido, pois fazia referência a umas sandálias de legionário que calçou quando criança. Seu nome era Caio Júlio César Augusto Germânico, e foi o terceiro imperador romano.

O historiador e escritor australiano Stephen Dando-Collins acaba de publicar Caligula: The Mad Emperor of Rome (“Calígula, o imperador louco de Roma”, inédito no Brasil), uma detalhada biografia que busca desmitificar algumas das lendas de crueldades infinitas que circulam em torno do imperador. Sua conclusão é que algumas são falsas, como que tenha transformado seu palácio em um bordel, onde obrigava as mulheres da nobreza a se prostituírem, ou que fosse para a cama com suas três irmãs; mas muitas outras são verdadeiras, sobretudo as atrozes crueldades e assassinatos caprichosos que a ele atribuídos. Entretanto, isso não o diferenciava do resto dos imperadores romanos, inclusive dos que têm fama muito melhor, como Marco Aurélio, responsável pelas piores perseguições aos cristãos.

“Tendo investigado e escrito sobre Calígula em vários livros durante as últimas décadas, eu sabia quais eram as fontes históricas mais confiáveis e informativas”, diz por email Dando-Collins (Launceston, Tasmânia, 70 anos), autor de numerosos ensaios, entre eles um valioso e informativo relato do grande incêndio de Roma na época do Nero, The Great Fire of Rome (O grande incêndio de Roma), bastante desmistificador. “Infelizmente, até o dia de hoje, alguns historiadores e biógrafos abordam Calígula com uma visão fixa e depreciativa do jovem imperador como ‘louco’ e ‘malvado’ desde seu nascimento. Eu me propus a apresentar uma visão muito mais tridimensional de Calígula. Seus familiares foram assassinados, e viveu sob a ameaça de sofrer o mesmo destino durante anos. Para complicar as coisas, foi obrigado a viver com seu tio-avô pedófilo, Tibério. Os leitores expressaram certa simpatia por Calígula uma vez que se deram conta da infância aterrorizada que teve, e porque provavelmente sofreu de transtorno bipolar a partir dos 20 anos.”

Nunca nomeou seu cavalo favorito como cônsul, embora tenha ameaçado fazê-lo para humilhar o Senado, e Dando-Collins tampouco acredita que tenha matado sua irmã Drusila quando grávida, arrancando o bebê de seu ventre enquanto ainda estava viva. Mas atribuem-se a ele atrocidades cometidas em uma época de tiranos sanguinários. Por exemplo, quando chegou ao poder, queimou publicamente todas as denúncias que tinham sido feitas contra sua família na época de Tibério, ato que o povo aplaudiu. Na verdade, escondeu-as para usá-las meses depois, assassinar todos os denunciados e se apropriar de seus bens. Seu humor era caprichoso e sádico, foi um megalomaníaco com um ego descomunal, sempre aberto ao elogio e alérgico à crítica, e qualquer um que estivesse perto dele podia arriscar a vida. Mas, novamente, tampouco havia muita diferença com relação à maioria dos imperadores anteriores e posteriores. Uma frase atribuída a ele reflete sua forma de governar: “Que me odeiem, desde que me temam”.

A fascinação por Calígula também teve seu reflexo na arqueologia. O The New York Times noticiou nesta semana que, se a pandemia permitir, será aberto ao público ainda neste semestre o Museu Ninfeo, na praça Vittorio Emmanuele, em Roma, que recupera objetos relativos ao imperador, assim como os escassos restos de seu parque privado favorito, os Jardins de Lamiano. Justamente por ocasião desta publicação, Mary Beard, renomada latinista, professora de Cambridge e autora de livros como SPQR, além de diretora de um documentário de 2013 da BBC sobre Calígula, entrou no debate através da rede social Twitter: “Há uma correlação muito forte entre os imperadores romanos que são monstros e os que são assassinados. É um tema do livro que estou escrevendo. Não significa que Calígula fosse um encanto (esse erro se comete frequentemente). Quer dizer que sua reputação póstuma não nos diz nada”.

Alguns grandes autores da antiguidade, como Suetônio, Tácito, Dião Cássio, Sêneca, Flavio Josefo e Fílon de Alexandria, escreveram sobre Calígula, alguns como testemunhas dos fatos, e outros de ouvir falar, anos ou décadas depois. Sobretudo Suetônio e Tácito, que cimentaram sua conveniente má fama quando já reinava em Roma a Dinastia Antonina. Nenhuma obra contemporânea teve tanta influência sobre nossa visão dos Júlios e Cláudios e do sadismo da Calígula como Eu, Claudius, Imperador (Abril Cultural), de Robert Graves, e a série de televisão da BBC baseada nesse romance. Embora tenha roteiro de Gore Vidal, o filme de 1979 dirigido por Tinto Brass e produzido pelo editor da Penthouse o transformou em um personagem de pornô soft e não contribuiu muito para o rigor histórico.

Dando-Collins trata de navegar por esta confusa variedade de fontes e lendas para construir, também utilizando os últimos descobrimentos arqueológicos, um personagem complexo, assassino sem dúvida, mas também vítima: sua família foi perseguida sem piedade por Tibério –neste caso, não há debate entre os historiadores sobre o caráter cruel, degenerado, repulsivo e letal do segundo imperador romano–, que tinha ciúmes de seu pai, o bem-sucedido e popularíssimo general Germânico, e Calígula passou toda a sua infância temendo por sua vida e submetido a todo tipo de abusos sexuais.

“Inclusive Suetônio nos diz que aos 14 anos Calígula mostrava um comportamento ‘exemplar’ e ‘obediente’, já que tentou durante toda a sua infância e adolescência evitar ser assassinado como seus pais e irmãos mais velhos por ser uma ameaça para o imperador”, afirma Dando-Collins. “E Calígula não era um fanático por sexo. Foi obrigado por seu avô Tibério a fazer trios homossexuais quando era adolescente, mas não consta que tenha participado de orgias em nenhum momento da sua vida. Tampouco as afirmações de que fez sexo com suas irmãs resistem ao escrutínio. Ordenou às esposas de vários senadores que fizessem sexo com ele, para humilhar seus maridos. Mas, quando se casou, foi fiel à sua esposa, a quem parece ter amado muito.”

No fim das contas, o fascínio por Calígula esconde a irresistível atração pelo mal, mas também pelo poder. Como diz Mary Beard em seu documentário: “Na história de Calígula se juntam pela primeira vez todos os elementos da tirania tal como a concebemos atualmente. E por isso talvez tenha deixado um rastro tão profundo em nosso mundo. Há 2.000 anos nos obriga a refletir sobre o poder e seus abusos”.

Calígula e Trump

O terceiro imperador romano sempre esteve na moda, mas nos últimos quatro anos se mostrou especialmente atual pela presença na Casa Branca de um governante megalomaníaco, ególatra, caprichoso e, como vimos depois do ataque ao Capitólio, perigoso. Tantos autores compararam Donald Trump a Calígula –o historiador Tom Holland, o prêmio Nobel Paul Krugman, o jornalista Michael Wolf– que Dando-Collins dedica o último capítulo de seu livro a esse tema. “Foi o número de comentaristas de todo o mundo que compararam Donald Trump com Calígula que, em parte, me inspirou a embarcar nesta biografia. Algumas das comparações se sustentam, outras não. Também sugeri que, como Calígula, Trump só duraria quatro anos no cargo antes que algumas pessoas próximas se voltassem contra ele, como acabou sendo o caso”.

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