Criada a primeira forma de vida imune aos vírus
Cientistas do Reino Unido demonstram como reescrever o genoma de uma bactéria para que ela produza proteínas que não existem na natureza e que são geneticamente imunes a infecções
Um grupo de cientistas do Reino Unido criou a primeira forma de vida resistente a quase qualquer vírus. Trata-se de uma bactéria Escherichia coli cujo genoma foi literalmente reescrito para incluir até 18.000 alterações que até agora não existiam na natureza. O trabalho é a demonstração de que a humanidade conseguiu não apenas compreender o código da vida, mas corrigi-lo de uma forma tão ampla que lhe permite criar uma vida sintética capaz de fazer coisas que nenhum outro ser vivo pode realizar.
A natureza permite que os seres humanos se movam, leiam, respirem, pensem, que os vírus desencadeiem um ciclo vicioso de replicação capaz de produzir uma terrível pandemia como a atual e que os micróbios gerem maneiras de bloquear uma infecção viral. Uma das maiores barreiras para a livre criação de formas de vida artificiais era que até agora não havia sido possível introduzir mudanças substanciais nas proteínas “naturais”. Essas moléculas são essenciais para qualquer função vital.
Mas a equipe de Jason Chin no Conselho de Pesquisa Médica do Reino Unido se propôs a demonstrar que o código genético de um ser vivo pode ser transformado de uma maneira tão profunda que dê origem a uma nova espécie invulnerável a qualquer vírus. Para entender a importância de sua conquista é preciso lembrar que todas as formas de vida neste planeta dependem de 20 blocos básicos que constituem as proteínas: os aminoácidos. O genoma de uma pessoa tem 3,055 bilhões de letras, mas entre todas elas há 64 fragmentos bem mais curtos, mas essenciais: os códons, que contêm as instruções para sintetizar os 20 aminoácidos conhecidos.
Em um estudo publicado nesta quinta-feira na Science, a equipe de Chin demonstra como reescrever as sequências desses códons para que tenham duas funções espantosas. A primeira é que eles sejam capazes de fabricar aminoácidos novos, artificiais, que não existiam até agora na natureza. A segunda é que as alterações feitas no genoma dos micróbios funcionam como um “corta-fogo” contra a maioria dos vírus bacterianos —fagos—, pois desabilitam o funcionamento de vários códons de que os vírus precisam para sequestrar o maquinário celular e passar a fazer cópias de si mesmos, aniquilando seu hospedeiro. É o mesmo processo que o coronavírus usa para infectar as pessoas: fazê-las adoecer e até causar sua morte.
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Clique aquiO potencial dessa descoberta para a criação de novos fármacos e biomateriais é notável, como destacam os autores do trabalho. A E. coli é uma verdadeira fábrica biológica da qual os humanos dependem para fabricar medicamentos e fermentar alimentos. Variantes modificadas desses e de outros micróbios são usadas na produção de mais de 600 fármacos, incluindo a insulina que os diabéticos tomam e os medicamentos anticoagulantes, que evitam a formação de coágulos sanguíneos. Entre muitas outras variantes de projeto, existe uma E. coli essencial para fabricar as novas vacinas de RNA mensageiro contra o novo coronavírus. Uma invasão de fagos (vírus que atacam bactérias) em uma fábrica que usa E. coli pode significar a perda de milhões de reais.
Cientistas britânicos já haviam demonstrado, há alguns anos, como criar um micróbio cujo genoma seja totalmente artificial. Também que sua técnica de reescrever genomas e expandi-los do jeito que se quiser funciona em células de animais, e que até permite a criação de organismos com genomas artificiais, incluindo moscas e vermes.
Agora eles usaram uma técnica para introduzir mudanças em grande escala na sequência genética das bactérias. O sistema usa a técnica de edição genética CRISPR-Cas9 como uma tesoura para cortar grandes fragmentos do genoma original. Em seguida, ele as substitui por outras sequências artificiais previamente projetadas em um computador. Os resultados são surpreendentes: os cientistas pulverizam um grupo de bactérias artificiais com um coquetel de vírus que aniquilaria qualquer E. coli natural. Bactérias artificiais resistem como se nada estivesse acontecendo e também crescem mais rápido. O trabalho mostra um fato preocupante: os cientistas não ampliaram o genoma original do micróbio, mas o encurtaram, ou seja, aprimoraram o código genético original de um ser vivo que foi produto de milhões de anos de evolução natural.
Juli Peretó, especialista em biologia sintética da Universidade de Valencia, destaca que as mudanças efetuadas “tornam a célula um lugar incompreensível para um visitante externo, como um vírus”. “O patógeno estará em uma célula com código genético alterado e, portanto, não será capaz de se expressar e produzir suas próprias proteínas.” “Aos poucos vamos superando na biologia sintética a fase do plágio do genoma, representado pelos genomas artificiais do Instituto Venter, que ressintetizam, simplificam ou reorganizam genomas naturais, e passamos a ter genomas que contêm instruções totalmente novas”, acrescenta.
Adicionar um grande número de novos aminoácidos ao catálogo existente permitirá “inúmeras aplicações”, dizem Delilah Jewel e Abhishek Chatterjee, químicos do Boston College (EUA) em um comentário ao artigo publicado nesta quinta-feira. Isso abarca “biopolímeros” que não existem na natureza e que “podem ter implicações profundas em muitas disciplinas, incluindo medicina e ciência dos materiais”, observam.
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