Morre Allan McDonald, o engenheiro que alertou para o risco de explosão da ‘Challenger’
Ele sofreu represálias após se opor ao lançamento do ônibus espacial em meio a condições atmosféricas adversas, em 1986. Explosão matou sete astronautas
Há pouco mais de 35 anos, o ônibus espacial Challenger se desintegrou numa violenta explosão, apenas 73 segundos depois de decolar, à vista de milhões de telespectadores e de alguns familiares dos sete astronautas que haviam sido convidados pela NASA para acompanharem o lançamento num palanque VIP no Centro Espacial Kennedy. Foi uma tragédia da qual a agência espacial norte-americana teve muita dificuldade para se recuperar. Mas, infelizmente, não era algo completamente inesperado. Entre centenas de engenheiros e técnicos que trabalhavam no lançamento, pelo menos dois tinham maus pressentimentos.
A noite anterior ao lançamento (em 28 de janeiro de 1986) tinha sido excepcionalmente fria. As temperaturas haviam caído a -8o, um registro insólito para o clima da Flórida. Enormes pedaços pontiagudos de gelo pendiam da estrutura da torre de serviço. O lançamento estava programado para pouco antes das 12h, hora local. A previsão era de que o tempo melhoraria um pouco, mas que o termômetro não subiria muito acima de zero. Nessas condições, Roger Boisjol e Allan McDonald, dois técnicos da empresa aeroespacial Thiokol, parceira da NASA no projeto, manifestaram suas reticências em manter a contagem regressiva para o lançamento.
A Thiokol era responsável pelos dois foguetes propulsores do ônibus espacial – enormes estruturas em forma de lápis acopladas às laterais da nave e que serviam para impulsioná-la nos primeiros minutos de voo. Eram os maiores propulsores construídos até então: 45 metros de comprimento e 3,5 de diâmetro. Dentro, armazenavam 500 toneladas de combustível pastoso, com um túnel central em forma de estrela que os percorria de cima a baixo. No momento do lançamento, um lança-chamas situado na ponta superior provocava a ignição simultânea de toda a superfície, e os gases em combustão procuravam um escape pelo bocal da parte inferior, empurrando o ônibus espacial para cima.
McDonald sempre carregou um difuso sentimento de culpa por não ter insistido ainda mais em adiar aquele lançamento
O foguete era formado por cinco segmentos cilíndricos empilhados um sobre outro. Quando o combustível era inflamado, a pressão no seu interior era enorme, e por isso as juntas entre seções foram equipadas com duplos anéis de borracha para assegurar a vedação. Eram justamente esses anéis que preocupavam os técnicos da Thiokol. O frio podia deixar a borracha quebradiça, e um vazamento em qualquer um deles poderia ter graves consequências.
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Clique aquiOs responsáveis pela NASA não concordavam com esses temores. É verdade que a noite tinha sido muito fria, mas as condições melhorariam quando o sol saísse. Assim, a contagem regressiva prosseguiu.
O que ninguém observou era que o grande tanque de combustível na barria do ônibus estava cheio de oxigênio e hidrogênio líquidos desde pelo menos seis horas antes do lançamento, a temperaturas de -200o C. Durante quase toda a noite, o vento soprou da mesma direção. Primeiro impactava o propulsor esquerdo, lambia o depósito principal de combustível, esfriando-o ainda mais, e por fim formava redemoinhos sobre o propulsor direito. Assim, os anéis de borracha tinham estado sujeitos a uma ducha gelada muito mais intensa do que indicavam os boletins meteorológicos.
O resto é uma história mil vezes recordada. No momento da decolagem, o propulsor direito se dobrou ligeiramente, o anel de borracha não resistiu ao esforço, e um jorro de chamas, quase um maçarico, escapou por ali, atingindo o suporte inferior do foguete. Cerca de 1,5 minuto mais tarde, o propulsor se soltava, rodava bruscamente e sua proa rompia a cúpula superior do tanque central. A explosão de milhões de litros de hidrogênio e oxigênio fragmentou o ônibus espacial (embora a cápsula dos astronautas tenha continuado subindo em uma só peça durante mais alguns minutos antes de cair no mar). Os sete tripulantes morreram no impacto, incluindo Christa McAuliffe, que deveria se tornar a primeira professora a ser mandada ao espaço.
Na investigação que se seguiu, McDonald teve uma intervenção decisiva ao recordar que a Thiokol advertira sobre os riscos de lançar a Challenger em um clima tão extremo. E, de passagem, que os anéis de vedação, como estavam desenhados, não eram totalmente confiáveis – como a trágica realidade acabava de provar.
A Thiokol não reagiu bem a esse depoimento. McDonald foi rebaixado de cargo. Escandalizado com a represália, que se estendia a outros funcionários, o senador Edward Markey conseguiu que o Congresso aprovasse uma resolução proibindo que a NASA formalizasse novos contratos com essa empresa. A Thiokol reconsiderou sua decisão, e McDonald foi promovido e nomeado responsável pelo redesenho das novas peças de vedação. O novo modelo equiparia todos os ônibus espaciais depois disso.
McDonald continuou trabalhando na Thiokol até sua aposentadoria. Sempre carregou um difuso sentimento de culpa por não ter insistido ainda mais em adiar aquele lançamento. Assim contou em um livro intitulado Truths, Lies and O-Rings (“verdades, mentiras e anéis de vedação”), no qual que defendia sem meias-palavras a análise ética na tomada de decisões.
Allan McDonald morreu há poucos dias, por sequelas de um acidente doméstico. Tinha 83 anos. Costumava repetir que “o tempo atenua o arrependimento pelas coisas que fizemos, mas o remorso pelas quais não fizemos é inconsolável”.
Rafael Clemente é engenheiro industrial e foi o fundador e primeiro diretor do Museu da Ciência de Barcelona (atual CosmoCaixa). É autor de ‘Un Pequeño Paso para (un) Hombre’ (Libros Cúpula).
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