Uso de fármacos de maneira desesperada contra o coronavírus deve ser racionalizado
Reciclagem de medicamentos e de ideias de todos os âmbitos da ciência é uma forma de acelerar a chegada de tratamentos, mas faz que com abunde o trabalho redundante e os testes de utilidade duvidosa
Durante os primeiros meses de luta contra o coronavírus, foram utilizados muitos medicamentos de maneira desesperada. Contra esse novo vírus foram empregados todos os tipos de fármacos criados contra microrganismos semelhantes, como o remdesivir, utilizado contra o ebola, e o favipiravir, aprovado para tratar a gripe. Sem tempo para criar tratamentos específicos, foi aplicada maciçamente a reciclagem de medicamentos aprovados para outras doenças que por seu mecanismo de ação também podem funcionar contra o coronavírus e dos quais já se sabe que são seguros. Com essa maneira de pensar, muitos pesquisadores que não trabalhavam com doenças infecciosas reorientaram seus conhecimentos para trazer soluções à crise sanitária.
Desde o começo, despertaram especial interesse as moléculas capazes de bloquear os mecanismos que outros vírus precisam para se replicar e se introduzir nas células humanas e que se encontram no novo coronavírus. E são frequentemente utilizados compostos para controlar a resposta excessiva do organismo contra a infecção que é letal na covid-19. Seguindo a lógica do reposicionamento, foram utilizados fármacos que ajudam as pessoas com doenças como lupus e artrite, enfermidades nas quais o sistema imunológico prejudica a quem deveria proteger.
Enquanto nos hospitais são testados medicamentos com a esperança de que funcionem, existem mais de 1.300 testes clínicos, de acordo com o site Clinicaltrials.gov, tentando comprovar quais medicamentos são realmente úteis contra o coronavírus. Um artigo publicado recentemente na revista Science pedia para que seja utilizada a informação obtida nos testes com pequenos grupos de pacientes nessa primeira onda da doença para elaborar experimentos mais amplos e bem controlados com os medicamentos mais promissores. Ainda que tenham sido vistos indícios de que alguns tratamentos possam funcionar, continuam sendo dados fármacos com escassa evidência.
Mabel Loza, responsável do grupo de pesquisa BioFarma da Universidade de Santiago de Compostela (USC), reconhece que ela mesma e seu grupo foram os que se lançaram desde o começo a propor a utilização de algumas moléculas que podiam bloquear atividades essenciais ao funcionamento do vírus. “Todos nós pensamos ao mesmo tempo que era preciso focar nos alvos principais de entrada do vírus nas células de nosso organismo, principalmente as respiratórias, e procurar remédios já conhecidos que já agissem sobre elas. Sobre esses medicamentos já conhecemos a farmacocinética, a posologia —de quanto em quanto tempo precisam ser ministrados— e as reações adversas”, diz Loza. A pesquisadora, entretanto, reconhece “que o voluntarismo pode levar a querer acelerar demais e os prazos de comprovação da eficácia e da segurança não podem ser evitados. De outro modo, pode ocorrer o efeito contrário, gerar falsas expectativas que, até mesmo, podem dar a imagem de que a ciência não é útil”, afirma. “Não faz sentido todos fazerem os mesmos experimentos com os mesmos objetivos e os mesmos compostos. É preciso deixar passar o tempo necessário e nos coordenar melhor”, acrescenta.
Em Barcelona, a SOM Biotech, uma empresa biofarmacêutica que utiliza inteligência artificial para procurar novos usos a medicamentos já aprovados, também reorientou suas capacidades para encontrar soluções à covid. Em condições normais, seu trabalho se centra nas mais de 4.000 doenças raras para as quais ainda não há tratamento. Poucas pessoas as têm, não dão rentabilidade econômica para que se invista na criação de medicamentos específicos para elas, mas o reposicionamento significa uma oportunidade. O sistema de filtragem informático da SOM Biotech permitiu descobrir, por exemplo, que a tolcapona, aprovada contra o Parkinson, também pode ajudar as pessoas com amiloidose hereditária, uma doença incomum que afeta o sistema nervoso e o coração.
Raúl Insa, diretor geral da SOM Biotech, reconhece que nunca havia pensado em utilizar sua tecnologia para procurar soluções a uma doença infecciosa, mas a situação é excepcional. “Nossa tecnologia funciona baseando-se na estrutura química e procuramos produtos disponíveis no mercado que possam bloquear a protease que o vírus precisa para se replicar”, afirma Insa. Dessa maneira encontraram três compostos com potencial para deter o vírus: um composto em pesquisa para o tratamento da hiperlipidemia, outro em desenvolvimento para alguns tipos de câncer, e um terceiro, e o que parece mais promissor, o Eravacycline TP-434, um antibiótico já aprovado feito com tetraciclina. Agora, diz Insa, estão procurando pacientes com os quais testar o produto, algo que na Espanha, que reduziu muito o número de hospitalizados nas últimas semanas, não é fácil.
Também em Barcelona, Joan Seoane, diretor de Pesquisa Transnacional do VHIO (Instituto de Oncologia Vall d’Hebron), professor do Instituto Catalão de Pesquisa e Estudos Avançados (ICREA, na sigla em catalão) e especialista em câncer, orientou seu conhecimento para minimizar os problemas causados pelo coronavírus. Há mais de uma década, pesquisa com seu grupo o papel da proteína LIF na habilidade dos tumores para escapar do sistema imunológico. A LIF é fundamental para nossa existência. Graças a ela, os embriões não são reconhecidos como corpos estranhos e destruídos pelas defesas da mãe, mas é uma ferramenta também utilizada pelos tumores para não ser marcados pelo sistema imunológico para sua aniquilação. A equipe de Seoane desenvolveu um anticorpo monoclonal que demonstrou sua utilidade em modelos animais para interromper a atividade da LIF e com ela a progressão dos tumores, e que já foi utilizado em pacientes em um teste clínico fase I.
Agora, pretendem utilizar esse mesmo anticorpo para desacelerar o coronavírus. “Vimos que alguns vírus, como o de Epstein-Barr, podem induzir a LIF para evitar o sistema imunológico do paciente e pensamos que é possível que os medicamentos que desenvolvemos para reativar o sistema imunológico contra os tumores também possam funcionar para esse vírus”, diz Seoane. “O ideal seria ter uma vacina pronta, mas se esse vírus se transformar em um HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana), e for difícil ter essa vacina, é possível que tenhamos que controlar a doença com um coquetel de medicamentos e devemos tentar coisas diferentes”, conclui o pesquisador do VHIO.
Loza, que também identificou um medicamento com potencial contra o coronavírus sobre o qual ainda devem se realizar comprovações, afirma que os cientistas, “como o restante da sociedade, estão abalados pelo que está acontecendo” e por isso dirigiram seus esforços nessa nova direção. “Gostaríamos de encontrar uma solução, mas devemos ter cuidado para não pular as barreiras e os tempos da ciência”, afirma.
Em sua opinião, o potencial de tantas mentes tentando resolver um problema é enorme, mas acha que os medicamentos só darão uma primeira linha de soluções. “Os medicamentos serão definitivos? Seria muita sorte”, indica. “Para que exista uma solução definitiva, como aconteceu com o vírus da hepatite C, é preciso criá-la especificamente”, afirma. “Mas ainda que por enquanto não se consiga curar a infecção, é possível diminuir a gravidade e o tempo da doença”, conclui.