Europa prepara aplicativos de celular para rastrear infectados pelo coronavírus

Países europeus consideram que a ferramenta tecnológica deve ser importante para controlar o vírus quando a população voltar às ruas

Mulheres no metrô de Madri usando máscaras enquanto olham para o celular.VICTOR SAINZ

O celular apita. Aparece um alerta: “Você esteve em contato com alguém que teve resultado positivo para coronavírus. Peça exames e se isole até saber o resultado”. Uma mensagem semelhante pode estar circulando em breve pelos smartphones espanhóis. Os países europeus têm cada vez mais claro que algum aplicativo que permita o rastreamento de casos será uma ferramenta importante para controlar a epidemia quando a população puder sair à rua.

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A Secretaria de Estado de Inteligência Artificial da Espanha anunciou na segunda-feira sua participação em um projeto europeu criado na Alemanha e chamado PEPP (Rastreamento Pan-Europeu de Proximidade para Preservar a Privacidade, na sigla em inglês). “Apostamos num aplicativo único para toda a Europa. Só obtendo a interoperabilidade entre países se poderá garantir uma rastreabilidade que assegure o intercâmbio de dados anônimos na luta contra a Covid-19”, afirmou a chefa da secretaria, Carme Artigas.

O funcionamento, em linhas gerais, é o seguinte: quando uma pessoa sabe que foi infectada, notifica o fato num aplicativo que, através do Bluetooth, vinha arquivando todos os usuários de celulares com os quais a pessoa teve um contato estreito, o que inclui manter uma distância inferior a dois metros durante pelo menos 5 ou 10 minutos (os parâmetros exatos ainda não foram definidos). Todos esses indivíduos receberiam o alerta recomendando o exame. A partir daqui, faltam concretizar muitos detalhes, que dependerão tanto da solução tecnológica adotada como de até que ponto os Governos decidam tornar obrigatório o uso do aplicativo e as notificações através dele.

A Apple e o Google já se puseram a trabalhar juntos numa colaboração inédita para facilitar esse protocolo global. A ideia é que cada país escolha um aplicativo e o ponha à disposição dos gigantes tecnológicos – que na Espanha dominam 99% do mercado – para que uma atualização do sistema operacional a instale, em princípio sempre com permissão do usuário, mas sem necessidade de intervenção dele – não seria preciso procurar o aplicativo para baixar. Na Espanha, fontes da Secretaria de Estado de Inteligência Artificial dizem que estarão preparados para quando o Ministério da Saúde solicitar esta solução. “Teremos a tecnologia pronta para o que for necessário. Estamos observando ativamente e preparados para oferecer todas as opções tecnológicas que as autoridades sanitárias decidirem ou não adotar”. Por enquanto, não se iniciou nenhum plano concreto, admitem.

No dia em que a Espanha apostar num aplicativo, terá que contar com a iniciativa privada. “O Governo não tem desenvolvedores”, alertam estas fontes. O olhar está voltado para os países asiáticos, sobretudo Singapura, que desenvolveu o modelo mais semelhante ao que se estuda implantar na Europa. Helena Legido-Quigley, pesquisadora, entre outras, da Universidade Nacional de Singapura, explica que estas soluções podem ser muito úteis: “Trata-se de automatizar o que este país já tinha feito com muito sucesso no começo da epidemia de forma manual: traçar os contatos. Mas dependerá muito da adesão e a cooperação dos cidadãos. Na Ásia eles têm um espírito mais coletivista que talvez facilite, em relação à Europa, que as pessoas cedam esse tipo de dados para controlar uma epidemia”. Ainda é cedo, diz Legido-Quigley, para avaliar o resultado obtido, embora o pequeno país asiático tenha recorrido ao confinamento desde 7 de abril, depois de uma terceira onda de infecções pelo coronavírus.

Este tipo de rastreamento não é, portanto, uma solução mágica, nem está claro que funcione. Mas nas últimas semanas ela é cada vez mais vista como a única grande alternativa tecnológica. Se as duas empresas que controlam a maioria dos celulares do mundo a introduzirem, saberemos que servirão agora para combater a pandemia, mas não há garantias de que, mais adiante, venham a ser usados para fins menos construtivos. A Apple e o Google insistem em que o desativarão quando a pandemia passar. A ideia abre todo tipo de debates éticos e legais.

Itziar de Lecuona, do departamento de Bioética da Universidade de Barcelona, acredita que os aplicativos podem ser uma solução “tremendamente invasiva para os direitos fundamentais, a intimidade e a privacidade”. “Lidará com uma informação muito sensível e não há um sistema 100% seguro. O debate é que tipo de aplicativo haverá, mas eu questiono se realmente a solução tem que passar por aí”, argumenta. Se vier a ser usado, ela defende que seja minimamente invasivo, que tenha previamente definido o que será controlado, quem, por quanto tempo e por quê. “Não seria mais lógico primeiro generalizar os exames e avançar a partir daí?”, pergunta-se.

Eduardo Manchón, consultor digital e fundador das empresas Mailtrack e Panoramio (comprada pelo Google), reconhece que em tecnologia é impossível não deixar rastros, mas assegura que existem soluções que dariam muita segurança e que a privacidade dos usuários não tem por que estar comprometida. “Quando você põe os celulares para conversar mediante Bluetooth, podem fazê-lo através de códigos em que nem sequer o usuário esteja identificado. E a informação pode ser armazenada em cada dispositivo, nem sequer é preciso que esteja num servidor”, explica.

Se na arquitetura adotada os Governos pudessem acessar aos dados, as medidas tomadas com eles dependeriam de cada um: “Podem desde enviar um drone para dizer ao doente que precisa se confinar obrigatoriamente, no caso mais extremo, até deixá-lo ao critério de cada um, assumindo sua própria responsabilidade, que acredito que será o que se fará na Europa, onde há muita preocupação com a privacidade”, acrescenta Manchón. Em todo caso, ele não acredita que haja motivos éticos para não utilizar os aplicativos de celular que, assegura, podem ser um aliado contra o coronavírus e não mais invasivos para a intimidade que muitas outras ações à disposição dos Governos.

Andrés Torrubia, empreendedor e especialista em inteligência artificial, observa que o que está por ver é até que ponto eles funcionam. “É preciso calibrá-los muito bem para que não estejam mandando alertas constantemente, se for assim não serviriam de nada. Também é preciso levar em conta que tem gente que poderá querer enganar o sistema para provocar erros. Tudo isto me parece mais relevante que a segurança, que é do que mais se fala. Não há nada infalível, mas pode haver soluções razoavelmente seguras. Mas antes de lançá-las é preciso fazer protótipos para comprovar se realmente serão úteis”, opina.

A Espanha está atrás de outros países, que já anunciaram seu propósito de adotar essas soluções. Na Alemanha, há semanas políticos e cientistas falam de um aplicativo desse tipo como instrumento-chave na fase posterior à do isolamento. A ideia é que entre em funcionamento nas próximas semanas, mas em todo caso será de uso voluntário por parte dos cidadãos, em respeito às leis de proteção de dados.

Na França, o aplicativo que está sendo desenvolvido se chama StopCovid. Conforme informou na segunda-feira o presidente Emmanuel Macron, sua instalação no celular será “voluntária” e garantirá o “anonimato”. O Governo italiano, por sua vez, também anunciou que um aplicativo desse tipo servirá de base para iniciar o fim do confinamento. Até agora, o Executivo já recebeu 300 propostas de empresas tecnológicas para desenvolvê-lo. O Governo do Reino Unido já está fazendo testes com um aplicativo que permitirá aos usuários alertar o Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês) se acharem que têm sintomas da Covid-19, conforme anunciou neste domingo o ministro da Saúde, Matt Hancock. “Toda a informação será trabalhada sob as normas éticas e de segurança mais rigorosas, só ficará à disposição do NHS e não será armazenada além do tempo necessário”, prometeu Hancock.

Antes de qualquer aplicativo, e para que estes sejam de alguma ajuda, a base são os exames. Será preciso que haja suficientes para que qualquer pessoa com sintomas leves, ou inclusive sem eles (e após manter contato direto com um portador), possa saber se está doente.

Com informação de Rafa de Miguel, Silvia Ayuso, Daniel Verdú e Ana Carbajosa.

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