6. Acampando em outro planeta

Acampamos numa ilha na Antártida onde não existe registro de que alguém tenha dormido antes. Como típica humana tive dois pensamento reativos. “Ai! Estamos incomodando os pinguins”. E, o segundo: “Por que teria alguma importância sermos os primeiros?”, conta a jornalista em seu sexto relato de expedição na Antártida

Pinguim nada perto da ilha Low Island, na Antártida.Christian Aslund/Greenpeace

Aconteceu algo que dificilmente acontece numa vida. E que ainda mais dificilmente pode se repetir. Acampamos numa ilha na Antártida onde não existe registro de que alguém tenha dormido antes. O Esperanza, navio do Greenpeace onde escrevo como hóspede neste momento, foi o primeiro a produzir uma carta de navegação nesta rota. Há um bom motivo para isso. Low Island, este é o nome da ilha, tem um clima zangado. Muita neblina, ventos que a varrem de ponta a ponta, tempestades frequentes e um humor que pode mudar a qualquer momento. E, quando muda, muda. Não pensei que fosse possível, no século 21, sermos os primeiros a acampar em qualquer lugar do planeta. Aconteceu: em 23 de janeiro de 2020.

OUTROS RELATOS DA EXPEDIÇÃO
Parte 1: Do centro do mundo ao fim do mundo
Parte 2: É Luz demais
Parte 3: Temos o direito de estar aqui?

Não tinha nada a dizer, do tipo “é um pequeno passo para um homem, um salto gigante para a humanidade”, como disse o astronauta estadunidense Neil Armstrong ao ser o primeiro a pisar na Lua. Ou, como o russo Yuri Gagarin, ao ver o planeta de fora: “a Terra é azul”. Como típica humana deste momento histórico, tive dois pensamento reativos. O primeiro foi: “Ai! Estamos incomodando os pinguins”. E, o segundo: “Por que teria alguma importância sermos os primeiros humanos a acampar em algum lugar?”.

Colônia de pinguins na Low Island, na Antártida.Christian Aslund/Greenpeace

Essa segunda pergunta eu fiz para o ator sueco Gustaf Skarsgard, que nos acompanha, e para um dos mais adoráveis cientistas que conheci, o americano Noah Strycker. Gustaf me assegurou que a excitação de ser o primeiro nada tinha a ver com ego, e sim com a possibilidade de ser testemunha, de ampliar o conhecimento humano. Quando ele pisava ali, não era ele, mas a humanidade. Ao mesmo tempo, ele apontou o paradoxo de que nossa experiência é limitada pela linguagem. Algo semelhante ao que tenho escrito aqui, de que as palavras são menores do que a vida e que, portanto, fracasso em contar a vocês o que vivo nesta expedição antártica, por maiores que sejam os meus esforços. Para contar de uma ilha em que pertenço ao grupo dos primeiros humanos que ali passam uma noite, eu disponho do mesmo vocabulário. Como estranhar o estranho com as mesmas palavras?

(Como vocês já devem ter percebido, carrego para todos os lugares para onde vou este conflito que me habita. Quanto mais desafiante é a experiência, maior se torna esse continente fora da linguagem dentro de mim. E que na Antártida ganha várias formas que de mim transbordam. Às vezes a de uma baleia, em outras um iceberg azul, agora essa ilha varrida também de todos os alfabetos conhecidos.)

Acampamento numa ilha na Antártida onde não existe registro de que alguém tenha dormido antes.Christian Aslund/ Greenpeace

Noah, que se apresenta como um “birdnerd”, algo como um “nerd de pássaros”, fala da emoção de experimentar a possibilidade de fazer um achado científico totalmente novo. Durante o jantar na barraca, onde comemos aquele tipo de comida instantânea que faz um cuscuz ter o mesmo gosto que um curry ou um espaguete à bolonhesa, os cientistas circulam, solenes, uma pedra onde um molusco ou mexilhão da era jurássica se eternizou. Quem seria aquele? O que estava acontecendo quando ele morreu? Que Antártida era aquela, a do seu tempo? As perguntas da ciência são sempre fascinantes, mesmo que hoje os cientistas vivam no ostracismo ao qual têm sido condenados por gente que prefere acreditar que o mundo é tão plano quanto o seu cérebro.

Eu escuto, entendo, mas sigo perturbada. Nenhum humano havia acampado naquela ilha, mas os pinguins de barbicha (chinstrap) que ali vivem são totalmente afetados pela ação humana. Aqueles pequenos seres que andam bamboleando repetem sua maravilhosa rotina de sobrevivência há milhares de anos e, agora, ela já não funciona. Tudo indica – e é exatamente o que os cientistas desta expedição do Greenpeace estão pesquisando – que a população desta espécie de pinguins tenha sido reduzida à metade do que era nas últimas décadas devido à mudança do clima. Ou mais.

Pinguins e seus filhotes.Christian Aslund/ Greenpeace

Pensem que é como se, em pouco tempo, a população da sua cidade diminuísse pela metade. É o que fizemos com os pinguins de barbicha. Esse pinguicídio é nossa obra. Encaro seus filhotes adolescentes, e como qualquer adolescente eles parecem desengonçados com sua plumagem em mutação, atrapalhados com o tamanho das asas e das pernas. Penso que os condenamos, que por nossa causa muitos não se tornarão adultos. Não farão seus rituais de acasalamento nem vão acariciar seus próprios filhotes com o bico.

Nós chegamos só agora com nossas botas esterilizadas. Mas o pior do humano chegou muito antes de nós. Não há lugar deste planeta fora do alcance de nossa força de destruição. Estou ali, diante dos pinguins que me olham curiosos. Eles não sabem, mas minha espécie, e portanto eu mesma como representante do que ela tem de melhor e do que tem de pior, somos responsáveis por suas estratégias de sobrevivência não funcionarem mais num clima em mutação acelerada.

Responsabilidade coletiva é justamente isso. Se somos beneficiários do que a comunidade humana produziu de melhor, mesmo que não tenhamos sido nós, individualmente, que inventamos isso ou aquilo, somos também responsáveis coletivamente pelo que ela fez de pior, como a mudança do clima, mesmo que não sejamos culpados individualmente. Essa é a diferença fundamental entre culpa e responsabilidade coletiva.

Multidão de pinguins na Low Island, na Antártida.Christian Aslund/ Greenpeace

Noah chama a minha intenção para o avesso da pergunta. Não o que sentimos nós ao pisar lá, mas o que sentiu o pinguim. Ele está maravilhado pela ideia de que esta é a primeira vez que aqueles pinguins de barbicha veem um humano. Outros cientistas que passaram rapidamente por lá o fizeram muitas décadas atrás, algumas gerações de pinguins atrás. Somos os alienígenas que surgimos no seu planeta a bordo de nossas naves que vêm pelo mar. Usamos grandes roupas cor de laranja, armamos tendas vermelhas, tudo em nós é coberto, exceto uma pequena parte do rosto. E, de tempos em tempos, um de cada vez, caminhamos até uma fenda que escavamos na neve, arrancamos uma parte daquela roupa, expomos a bunda, imagino que uma região da anatomia humana bastante estranha para um pinguim, e fazemos cocô.

Só menciono isso porque achei o banheiro extraordinário e precisava achar um jeito de contar sobre ele. Lá só número dois, porque tudo cai numa caixa que será levada para dentro do navio, para não contaminar a ilha. Para urinar, temos que ir à praia, para que nosso xixi desapareça logo, diluído no oceano. Acreditem, não é divertido no frio antártico, especialmente para mulheres.

Banheiro utilizado no acampamento.Eliane Brum

Agora não há turistas, e o mar é selvagem. Pular de um bote a outro é uma aventura. É preciso ter uma razão mais forte para vir a uma região como essa. Os cientistas da expedição que viajam no Esperanza têm. Eles são contadores de pinguins. Contam manualmente, e contam com a ajuda de drones. Tudo agora é fotografado e colocado nos computadores para aumentar a precisão da pesquisa. À noite, os ajudamos a contar os pinguins que faltam. Já fiz muitas coisas estranhas na vida, mas acho que contar pinguins numa ilha na Antártida acaba de conquistar o topo do meu ranking pessoal. Isso significa que a coleta do primeiro catarro do dia de indígenas yanomami na floresta amazônica, para pesquisar tuberculose, caiu para um honroso segundo lugar. Contamos 268 pinguins gentoo, a outra espécie que habita a ilha, após o jantar. Três vezes para ter certeza da precisão da contagem.

O cientista Noah Stryker conta o número de pinguins.Christian Aslund/Greenpeace

Somos um curioso grupo desbravador, só possível numa época como a nossa. Três ativistas do Greenpeace, três contadores de pinguins, dois jornalistas, um guia polar, Édith Piaf e Floki. Composição muito diferente das expedições dos séculos 19 e início do século 20. Uma parte da conversa na hora do jantar abordou a dificuldade de explicar para as pessoas que amamos que o planeta ruma para o apocalipse climático e que elas precisam fazer alguma coisa, além de mudar seus hábitos de imediato. Elas nos amam, mas não escutam. Elas confiam em nós, mas nos ignoram. “Como podemos fazer?”, indagava uma angustiada Marion Cotillard.

Sentávamos em roda, como nas noites de qualquer acampamento. Noah contou a lendária travessia de Ernest Shackleton para se salvar após a destruição do Endurance, seu navio que encalhou na Antártida em 1914 e acabaria esmagado entre dois blocos de gelo. As conquistas apoteóticas seguem fascinando mesmo a nós, humanos protegidos por todos os confortos que o melhor da tecnologia pode oferecer, de roupas a comida. Enquanto ele narra a história que definiu o heroísmo da modernidade, como é anunciado no livro mais famoso sobre a expedição (Endurance, de Alfred Lansing), há um zumbido no meu bolso.

Sim. A equipe de tecnologia do Greenpeace consumou a façanha de testar um novo sistema que permitiu internet mesmo numa ilha nunca antes desbravada. Confiro por que me procuram com tanta insistência, certa de que talvez o Papa esteja querendo me consultar sobre algum importante dilema antártico. Tiro as luvas com dó dos meus pobres dedos, desvio meu pensamento das agruras de Shackleton, mas, afinal, tem de ser o Papa. Eu não sou religiosa, mas gosto do Francisco. “Não há Qboa nem sabão em pó”, me informa em tom irritado a mensagem de WhatsApp. Sim, a pessoa do outro lado está me pedindo para deixar a Antártida, passar no supermercado e comprar Qboa e sabão em pó. Eu respondo. “Estou na Antártida, rodeada por pinguins”. A pessoa não quer saber, tem um problema e só eu posso resolver. Boto o celular no modo avião.

Tenho absoluta certeza de que Shackleton não enfrentou essa adversidade doméstica. Se eu tivesse alguma ilusão heroica, ela teria sido desinfetada pela Qboa lançada pelo Whatsapp. Não há mais romantismo no século 21. Estamos destinados ao prosaico. Enterro minha touca na cabeça e vou olhar os pinguins me olhando. Nem quero saber o que estão dizendo sobre mim. Definitivamente, não parece bom.

Christian Aslund/Greenpeace

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de Ruínas, Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, meus desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum

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Eliane Brum | A Bordo Do Navio Arctic Sunrise

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