Morte de Lázaro Barbosa exibe roteiro macabro de ‘reality show’ policial brasileiro
Pequena cidade de Goiás comemorou desfecho da captura de acusado após 20 dias de terror, mas também o fizeram Bolsonaro, que escreveu “CPF cancelado”, e policiais em carreata, gestos parte de uma cultura onde prender não é o plano A
“Lázaro está morto.” A voz do repórter Roberto Cabrini, da Record, repetindo a notícia três vezes na TV selou o fim da busca por Lázaro Barbosa Sousa, acusado de mais de 30 crimes e que se escondeu por 20 dias nas matas do Cerrado brasileiro, numa saga acompanhada minuto a minuto pela mídia e pelas redes sociais. O anúncio veio praticamente ao mesmo tempo em que governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), divulgava em seu perfil no Twitter a prisão do criminoso de 32 anos. Depois, o secretário de Segurança Pública de Goiás, Rodney Miranda, reconheceria a morte do foragido da Justiça.
“Não tivemos outra alternativa, senão reagir”, justificou-se Miranda que, cercado de repórteres, afirmou que com Lázaro, os policiais encontraram 4.300 reais e uma pistola .380. Inicialmente foi divulgado que Lázaro teria morrido após ser atingido por um tiro na virilha, numa suposta troca de tiros em um arbusto no meio do Cerrado goiano. Pouco tempo depois de o corpo dele ser carregado de uma viatura policial até uma ambulância do Corpo de Bombeiros, imagens do corpo cravado de balas ―com dilaceração no crânio― começaram a circular. No peito e no rosto podia-se ver ao menos 15 perfurações a bala. Segundo o relatório da Secretaria Municipal de Saúde de Águas Lindas de Goiás, divulgado horas depois, o homem foi morto com 38 tiros.
O desfecho para o criminoso que ficou conhecido como “serial killer do DF”, “serial Killer de Goiás” e “maníaco” não surpreendeu. Apesar de sua caçada haver mobilizado cerca de 270 agentes das policiais civil e militar de Goiás e do Distrito Federal, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Diretoria Penitenciária de Operações Especiais, Corpo de Bombeiros Militar e até a Casa Militar que atende o governador Caiado, o foragido não foi preso nem neutralizado. Sucumbiu com uma rajada de tiros.
“As informações que recebi são de que o trabalho da Casa Militar do Governo já acontecia há várias noites, eles estavam sem dormir, e fizeram um cerco [na região de Águas Lindas de Goiás] e [Lázaro] recebeu os policiais atirando. No momento em que recebi essa informação da captura, ele estava sendo deslocado”, disse Caiado em entrevista à CNN Brasil.
A incongruência entre os relatos de trocas de tiros, de captura e deslocamento para o hospital e as 38 marcas de balas no corpo de Lázaro apontam para um prática comum de procedimentos policiais no Brasil onde prender e levar o acusado ante a Justiça não costuma ser o plano A, muito menos em casos de grande comoção como o de Lázaro. No Twitter, o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, questionou: “1) Por que uma equipe da Casa Militar achou Lázaro enquanto uma Força Tarefa de Polícias não? 2) Ele integra uma quadrilha que queria tomar chácaras e fazendas na região? 3) Houve perícia ou isolamento de local? Sua morte evitará o aprofundamento das investigações?”
À TV Record, os familiares de Lázaro também questionaram: “Atiraram nele demais, não precisava tudo aquilo. Por que não deram um tirinho ou dois na perna, pra depois investigar e interrogar? Mas foi muito cruel”, disse Amélia, tia dele.
Comemoração da cidade, dos policiais, de Bolsonaro
Acostumada à calmaria interiorana, os cidadãos de Cocalzinho de Goiás ―município que viveu a maioria dos dias de horror na busca por Lázaro― viviam o misto de medo e expectativa pela captura do acusado, apontado como o assassino de uma família inteira. Quando o desfecho chegou, após 20 dias de um reality show policial, houve alívio e comemorações nas ruas do lugarejo que, com estimativa de cerca de 20.000 moradores, segundo o IBGE, já vinha do trauma de perder 56 vítimas da covid-19, incluindo o prefeito, Alair Rabelo Neto, o Nenzão, nos últimos meses.
Já os policiais comemoraram nas instalações de uma escola utilizada como uma espécie de quartel-general montada pela força-tarefa para capturar o homem. Tudo com palavras de ordem em homenagem às Rondas Ostensivas Táticas Metropolitanas (ROTAM), batalhão de choque da Polícia Militar goiana, responsável pelo abatimento do criminoso. À tarde, 35 viaturas fizeram uma espécie de carreata pelas estradas dos municípios da região, sob aplausos.
Agora, era hora de desarmar os aparatos da extensa cobertura de mídia, para a qual também apareceram youtubers em busca de likes e até um caçador em busca de notoriedade. José Marcos Rodrigues Pereira, de 41 anos, conhecido como Babaçu, foi um dos que se tornou uma celebridade. Dizia que encontraria Lázaro por causa da experiência de andar pela região atrás de animais silvestres. No final do dia em que sua “caça” havia sido abatida, disse ao EL PAÍS que lamentava não ter podido ajudar a polícia melhor: “Se ele fosse preso, daqui dez anos ele sairia de novo. Até 100 famílias na região não dormiam mais em casa. Os policiais com coturnos rasgados, roupa suja, estavam cansados”.
No Twitter, Jair Bolsonaro, que por dias a fio animou os policiais, comemorou: “CPF cancelado”, um jargão usado quando os criminosos são mortos pela polícia. Foi compartilhado mais de 32.000 vezes. “O Brasil agradece! Menos um para amedrontar as famílias de bem. Suas vítimas, sim, não tiveram uma segunda chance.”
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