_
_
_
_

Laura Dern: “A política norte-americana me põe a 100 por hora”

É o momento de Laura Dern. Seu papel em ‘História de um Casamento’ pôs seu nome, segundo os prognósticos, na sala de espera do Oscar que ainda não tem

Ramona Rosales

NINGUÉM CONTA melhor do que David Lynch. Por ser um dos grandes mestres do cinema, ou por ser um dos melhores amigos de Laura Dern, ou talvez pelas duas coisas. “Não há ninguém como ela. Tem esse lado completamente independente, uma atriz que não teme nada, rebelde e indômita, mas que ao mesmo tempo é um produto de Hollywood, parte dessa realeza nascida e criada na indústria. Seu nome evoca o eco da velha Hollywood como o de pouquíssimos artistas na atualidade. Nunca dei um plano por acabado sem que Laura não tivesse dado tudo de si, e inclusive mais do que esperava”, diz o diretor de O Homem Elefante. Esta é sua descrição de uma atriz incombustível, alguém com 40 anos de carreira em 52 de vida, que nunca perde o sorriso ou o bom humor. Lynch sabe do que fala. A futura estrela durou dois dias na universidade (onde pensava estudar Psicologia e Jornalismo) antes de ser contratada pelo diretor para seu filme Veludo Azul (1986). E, exatamente duas décadas mais tarde, a atriz passaria nada menos do que três anos rodando aquele que seu amigo Lynch considera ser o melhor filme de Laura Dern, Império dos Sonhos (2006), um longa que o público praticamente ignorou.

“Sua energia é mágica e contagiosa”, confirma o cineasta Jean-Marc Vallée, que a dirigiu em Livre, de 2014. Assim fala sobre alguém que, apesar de trabalhos notórios em filmes como Coração Selvagem (1990), As Noites de Rose (1991) e Jurassic Park (1993), nunca recebeu um Oscar. Sua recente indicação como melhor atriz coadjuvante por História de um Casamento, a terceira em sua carreira, pode finalmente acabar com essa sina, graças a um trabalho com o qual está colhendo alguns dos prêmios mais importantes da indústria cinematográfica.

Ramona Rosales

Alta e flexível, essa atriz versátil e imprevisível é ao mesmo tempo uma elegante girafa ou uma desengonçada avestruz, embora a filha de Bruce Dern e Diane Ladd nunca esconda a cabeça. Seu porte passa em um instante da maior elegância, apaixonada pela moda e pelos seus sapatos Louboutin, ao look da mulher mais extravagante. O mesmo ocorre com seu rosto, elegante, afiado, sorridente e aparentemente sereno, amiga da meditação e da ioga e ardorosa defensora do meio ambiente. Uma hippie de coração, mas metida no uniforme de uma mulher calculista, capaz de mudar a temperatura do encontro com uma mexida de cabelo.

Seu trabalho é igualmente complexo, flexível, elástico. Assim confirma a atriz Reese Witherspoon, sua amiga e colega de batalhas não só em Livre, em cujo set surgiu essa amizade, mas também atualmente, no elenco da série Big Little Lies: “Laura improvisa como um virtuose ao piano. Nunca vi algo igual, com toda a equipe aplaudindo quando acaba suas cenas. É extraordinária”, diz. O diretor nova-iorquino Noah Baumbach recorreu a Dern para melhorar os diálogos em História de um Casamento, o filme que agora lhe valeu a candidatura ao Oscar. “Gostávamos de falar desse filme imaginário que tínhamos rodado, porque não podíamos acreditar que nunca tivéssemos trabalhado juntos, tantos anos depois de nos conhecermos”, ri o realizador, agora que já trabalharam juntos de verdade. E como deixou claro em Jurassic Park, a saga a que retorna este ano com o Jurassic World 3, Laura Dern pode com tudo. “Se não fez um blockbuster antes é só porque não teve interesse, porque Laura é a melhor em tudo”, diz dela Nicolas Cage, que em 1990 contracenou com Dern em Coração Selvagem, de David Lynch.

“Nunca tive paciência para desfrutar de uma vida como estrela. Não tenho tempo para os paparazzi”

Mesmo assim, existe uma Dern mais prolífica, mais próxima de mulheres complicadas como as que interpretou em Ruth em Questão (1996), de Alexander Payne —um de seus trabalhos preferidos—, em The Tale (2018), de Jennifer Fox, e na série Enlightened (2011), pela qual ganhou o Globo de Ouro. “Infelizmente tem razão”, confessa a atriz após alguns segundos de pausa, repassando mentalmente a sua filmografia. “Sim, existe um tipo de personagem que interpretei e que o público norte-americano, não o europeu, tem problemas em ver no cinema. São mulheres descabeladas, que como atriz gosto de interpretar, porque gosto de ser meio rebelde. Tenho interesse pelos papéis centrados em pessoas pouco populares, o que chamo de personagens incompreendidos. Mas também acredito que interpretei tantas mulheres, todas elas diferentes, que não me parece justo que sejam percebidas como a mesma. Essa homogeneização as desvaloriza, porque cada uma tem um valor em si mesmo. Dito isto, não sou eu que irei me queixar.”

Laura Dern não dissimula o orgulho de ter tido o privilégio de ver em ação diretores como Hal Ashby, Martin Scorsese, Peter Bogdanovich, Robert Altman, David Lynch e até mesmo Alfred Hitchcock, que dirigiu seu pai, Bruce Dern, em Trama Macabra, de 1976.

Poucas figuras das telas podem, como Dern, falar de balbucios tão peculiares. Foi concebida durante a rodagem de Os Anjos Selvagens (1966), de Roger Corman, onde seus pais se conheceram. Viu a cabeça do seu pai rodar escada abaixo em Com a Maldade na Alma (1964), de Robert Aldrich, e se encheu de sorvete enquanto fazia figuração em Alice Não Mora Mais Aqui (1974), de Martin Scorsese, no qual sua mãe atuava. Não é só a filha do “homem que matou John Wayne” em Os Cowboys (1972), de Mark Rydell, pois em suas veias corre também o mesmo sangue que inspirou o dramaturgo Tennessee Williams, o poeta Archibald MacLeish, a atriz Mary Lanier e o político George Dern, que serviu durante o gabinete de guerra sob as ordens de Franklin Roosevelt, todos eles parentes mais ou menos próximos da atriz. Conta que, ao longo da vida, nunca encontrou ninguém que a chateasse, e isso inclui Gregory Peck, Jane Fonda, Jack Nicholson e Gena Rowlands, amigos da família, ou sua própria madrinha, a também atriz Shelley Winters. “Ela foi uma das pessoas que mais me influenciaram, que esteve comigo quando me magoaram e quando descobri o método interpretativo, me permitindo ficar no seu apartamento de Nova York enquanto estudava no Actor’s Studio. Ela me ensinou como assistir a uma estreia vestindo jeans e tênis, mas sempre com um bom casaco e os lábios bem pintados. Dela também aprendi que como mulher, no cinema, o melhor é contar a história mais complicada, enredar com sua sexualidade, com sua idade, com tudo o que a personagem puder lhe dar”, recorda, emocionada.

Mais informações
‘Big Little Lies’ e ‘The Handmaid’s Tale’ coroadas no Globo de Ouro das mulheres, em 2018
Todos os indicados ao Oscar 2020
“Eu me envergonho”: o discurso de Joaquin Phoenix no Bafta que insulta e redime Hollywood

No momento da volta às telas pela porta da frente, e de pensar na conquista do Oscar, a atriz norte-americana não se cansa de repetir que sempre esteve por aí de um jeito ou de outro. Também gosta de falar da maneira como Hollywood permite que suas mulheres envelheçam na tela, embora sua longevidade não se deva tanto à idade, e sim à precocidade da sua carreira: “O que acontece é que, como todos os caminhos levam à minha mãe e à minha avó, assim como elas nunca tive paciência para desfrutar de uma vida como estrela. Sou apaixonada por atuar, mas não tenho tempo para os paparazzi. E após passar a vida trabalhando desde menina como atriz, quando chegou esse momento em que quis ter meus próprios filhos preferi viver a vida de outra forma e sair em turnê”, conta. É verdade que se dedicou aos seus filhos, Ellery Walker, de 18 anos, e Jaya, de 15, ambos do seu casamento com o músico Ben Harper, de quem foi “sua groupie” durante um tempo, como gosta de dizer.

Daí o contraste com a avalanche dos últimos anos, não só em quantidade, com uma média de três a quatro filmes por ano, além de séries de televisão poderosas como Big Little Lies, mas também em qualidade. Dern aceita de novo o inevitável: “Se quiserem falar de um segundo capítulo da minha vida, que falem, não me importa. Também sinto um novo apetite, uma nova febre, uma nova vontade de explorar um novo universo divertido e sombrio, com amor e fúria dentro de um mundo que realmente adoro, que é a atuação”, afirma, para acrescentar com voz firme: “É incrível e belo me sentir a Laura mais atrevida da minha carreira”.

Nem tudo é cinema numa vida pontuada pelo que bem poderia denominar-se “amores de altura”. O último exemplo é o ex-jogador da NBA Baron Davis, com quem tem sido vista recentemente. Os atores Kyle MacLachlan e Billy Bob Thornton também estiveram entre seus amantes, este último rompendo seu noivado com aquele casamento-relâmpago com Angelina Jolie. E, continuando com a altura, Jeff Goldblum foi um de seus pares mais duradouros, após se conhecerem na rodagem de Jurassic Park. Dern não tem tempo para recordar seus homens, com os quais diz “em geral” manter uma relação muito cívica. Mas reconhece que a altura é algo que marcou sua vida. “O mesmo aconteceu com Nicole Kidman, é algo que nos marcou”, comenta a respeito de sua colega de elenco na série Big Little Lies, outra das mulheres mais altas de Hollywood.

“É uma atriz que não teme nada, é indômita e ao mesmo tempo um puro produto de Hollywood” (David Lynch)

De todos os seus parceiros amorosos, o músico Ben Harper foi o único com quem esteve casada. Foi uma história que acabou em divórcio, mas, como comenta depois da rodagem de História de um Casamento, está bastante claro que seus filhos são a melhor lembrança daquele relacionamento. Ellery e Jaya também lhe recordam outras coisas. Por exemplo, sua paixão pelo universo da moda, um campo onde Ellery atua como modelo. Laura Dern gosta do trabalho da estilista Stella McCartney, a quem admira e com quem mantém uma relação de amizade, e de Gabriela Hearst, que só usa materiais reciclados. Mas também opta por grifes mais clássicas, como os trabalhos de Pierpaolo Piccioli para Valentino e Anthony Vaccarello para Saint-Laurent. De novo, o cinema é sua escola, remontando-se aos tempos de O Grande Gatsby, de 1974, no qual seu pai atuou e onde conheceu Ralph Lauren como seu figurinista. Ou, mais recentemente, metida na pele de Renata Klein, seu alter ego em Big Little Lies. “Temos o mesmo gosto, embora usemos a moda de forma diferente”, admite a atriz.

Seus filhos também são razão e parte de seu ativismo político, acompanhando-a em manifestações contra o Governo de Donald Trump, em defesa da igualdade de gênero e do meio ambiente. Ela se recorda a si mesma, com pouco mais de oito anos, protestando com sua mãe, ombro a ombro com gente como Jane Fonda e Ed Asner, atores com consciência que ainda continuam na luta. “Se você quer saber o que põe a 100 por hora, me fale da política americana. Ou do meio ambiente”, sussurra. “Fico arrasada de ver o que acontece na Austrália, e no mundo todo em geral. Como atriz, como cidadã e como amiga, porque lá tenho muitas amizades, como a própria Nicole Kidman e Naomi Watts. Mas sobretudo como mãe. Porque isso sim que é duro, ser mãe, e não o fato de criar os personagens nos quais acredito. Olhar os meus filhos nos olhos e lhes dar esperança. Falamos da fúria dos meus personagens, da sua força. E do meu otimismo. Mas eu encontro essa força, esse incentivo, no rosto sorridente de Ted Danson quando é detido em Washington por defender nosso querido planeta”, dispara Laura Dern, desabafando algo que que pesa mais do que qualquer dos seus trabalhos. Porque, como admite a atriz, por mais duros que sejam seus papéis, nunca os leva para casa. Leva, isso sim, o cansaço do trabalho bem feito, mas nada que sua rotina diária de meditação e ioga não melhore.

Com Scarlett Johansson em ‘História de um Casamento’.
Com Scarlett Johansson em ‘História de um Casamento’.Everett Collection

Ativa no futuro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos, organização cuja presidência chegou a disputar, Dern está trabalhando em entrevistas com seu pai e com o Jack Nicholson a fim de contribuir para preservação da memória de uma Hollywood à qual pertence, mas que está se apagando. Também está preparando um livro de mãe e filha com Diane Ladd, e outro entre amigas e correligionárias com Mónica Ramírez, cofundadora da Aliança Nacional de Camponesas e a seu lado desde que em 2018 levaram os protestos do #MeToo e Time’s Up ao tapete vermelho do Globos de Ouro, uma luta que continua. “Laura me odiou desde o primeiro dia. E isso que eu já a conhecia por ter trabalhado com seu pai”, recorda o ator Bob Odenkirk, que contracenou com ela na última adaptação de Mulherzinhas. “Atrás das câmeras nos dávamos muito bem. Há pouquíssima gente com tanto humor como ela num set. Mas na rodagem me odiava, e não a critico, porque meu personagem representa muito do que ela odeia em um homem”, reflete o artista sobre essa lutadora pela igualdade que é capaz de levar sua guerra ao século XIX. “Como diz Marmee, isto me irrita quase todos os dias da minha vida”, desculpa-se Laura Dern sobre o comportamento da sua personagem, essa espécie de mãe-coragem que ancora o clássico de Louisa May Alcott, e que a atriz assumiu como sua.

E, além de tudo isto, voltam à sua caderneta os benditos dinossauros da saga Jurassic Park. “Não pensei duas vezes. Disse que sim sem nem sequer saber o que estavam inventando”, admite, entusiasmada como uma menina com seu próximo trabalho. A atriz adora essa franquia e não hesita em citá-la sempre que alguém lhe aparece com a famosa dicotomia entre os atores com maiúsculas, que protagonizam filmes intocáveis de qualidade, e esses outros que estrelam filmes que simplesmente rendem milhões nas bilheterias. “Como alguém que vinha do cinema independente, eu tinha minhas dúvidas, mas Laura praticamente torceu meu braço me fazendo ligar para Joe Johnston para que contasse comigo na saga, e graças a ela me diverti muito nesse filme”, recorda o ator William H. Macy, grato a ela por sua escalação em Jurassic Park 3 (2001).

Quanto a ela, admite abertamente adorar Steven Spielberg “e o universo que criou na companhia de Michael Crichton e David Koepp”. E acrescenta com uma pequena dose de ironia: “Mas, sobretudo, o que há melhor que um dinossauro como colega de elenco? São encantadores e majestosos. Sabem o seu lugar e é bom que você também saiba o seu. Então vou passar uma boa temporada com os dinossauros.”

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_