Ex-seminarista faz relato sobre denúncias de abuso contra o arcebispo metropolitano de Belém. / TARSO SARRAF
Ex-seminarista faz relato sobre denúncias de abuso contra o arcebispo metropolitano de Belém. / TARSO SARRAF

“Não sei por que aceitei ser submetido a tudo isso. Você fica fragilizado, preso àquilo”, diz ex-seminarista vítima de abuso sexual

Ex-seminarista diz que foi chantageado para aceitar abuso sexual do qual afirma ter sido vítima por parte do arcebispo metropolitano de Belém

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No relato abaixo, um dos quatro ex-seminaristas que fez a denúncia ao MP e às autoridades eclesiásticas, hoje um estudante universitário de 26 anos, conta sua história e fala sobre a relação com a Igreja Católica, sua religiosidade e sobre o assédio e abuso sexual do qual afirma ter sido vítima por parte do arcebispo metropolitano de Belém, dom Alberto Taveira Corrêa.

“Minha família é muito religiosa e cresci frequentando a igreja. Aos 10 anos de idade já era coroinha e passei a me interessar muito pelas questões sacerdotais. Minha vida sempre foi escola, casa e paróquia. Quando eu tinha 14 anos, todo os dias estava na igreja e participava de muitas atividades lá. Em 2010, eu já tinha 15 anos, dom Alberto chegou a Belém. Eu o conheci logo no começo do ano na paróquia em que eu trabalhava. Estava organizando a liturgia e participei de uma cerimônia do lado dele. Após o final, ele me chamou num canto da sacristia e perguntou se eu tinha desejo de ser padre. Conversamos um pouco, ele escreveu o número dele em um pedaço de papel e disse ‘Me ligue, eu vou viajar para Roma e quando eu voltar você me liga para a gente conversar’. Guardei o número e não liguei. Passou o tempo e voltei a encontrá-lo em uma missa em agosto em outra igreja. Ele me cobrou por não ter ligado para ele. No mês seguinte, e a essa altura eu já tinha feito 16 anos, o encontrei de novo em outra igreja. Ao final ele me cumprimentou e perguntou o que eu ia fazer. Respondi que ia para casa. ‘Então vamos comigo na minha residência para jantar’, disse ele. ‘Tá bom, eu vou’, respondi.

Do jantar participaram outras pessoas, que estavam hospedadas no palacete dele, e depois da refeição ele me chamou no escritório dele. Pediu para eu me apresentar de novo, falar da minha família e o que eu achava de ser padre. Perguntou como estava o colégio, se eu estava namorando, se tinha muitos amigos. Disse que ainda não tinha tido nenhuma namorada e que tinha poucos amigos, sempre fui muito sozinho mesmo. Aí ele já perguntou se eu sentia atração por mulher ou por homem. Fiquei surpreso com a pergunta, acho que ainda mais porque naquele momento da minha vida eu não sabia a resposta, estava confuso. Também porque era estranho ter uma conversa daquela com um homem na casa dos seus 60 anos de idade. Ele insistiu, disse que era uma questão importante. Aí ele do nada me perguntou: ‘você se masturba?’. Fiquei chocado, constrangido, assustado. Ele percebeu, mudou de assunto e encerrou o papo. Me mandou procurar um outro padre que é com quem eu ia começar os encontros vocacionais antes de entrar no seminário.

No primeiro semestre do ano seguinte cheguei a ter uns três outros encontros reservados com o arcebispo, que ele marcou, enquanto me preparava para entrar no seminário. Sempre naquela pegada, cada vez mais aberta: falando sobre minha sexualidade, masturbação, pornografia, que tipo de pornografia eu gostava… e eu sempre muito fechado. Ele ficava bravo, dizia que eu tinha que me abrir mais, aquela coisa. No final do ano, quando a turma que iria entrar no seminário em 2012 estava para ser definida, tive um novo encontro com Dom Alberto. Ele me disse que o padre tinha me avaliado mal, que me achava muito fechado, mas que ele achava que o seminário era o lugar certo para corrigir esse tipo de coisa e no final eu recebi a carta-convite para ingressar.

Comecei no Seminário Pio X no início de 2012 com 17 anos de idade. Minha cabeça estava um caos. Sem o apoio de toda a família na minha decisão, saí de casa menor de idade, não estava bem resolvido em vários aspectos e fui para o internato do seminário. Lá o contato com o mundo é muito restrito. Não tem computador, não tem televisão... celular podia ter, mas só para uso no quarto, cada um tem seu próprio quarto. De qualquer forma também não tinha sinal. Era muito difícil conseguir comunicação com o mundo de fora. No primeiro ano, nós não saímos nem para visitar nossas famílias. Elas podem ir lá ver a gente apenas um vez por mês. Ficamos lá, uma espécie de um convento com o claustro, o pátio no meio. Anexo, fica o prédio do seminário principal, para quem já passou por esse ano de entrada.

Durante muitos meses eu não fiz os atendimentos espirituais com o bispo na casa dele. Após alguns meses de seminário, chegou a minha vez de ir passar o final de semana na casa do arcebispo. Tinha escala para isso e todo sábado e domingo ia uma dupla de internos do seminário. Chegávamos na casa dele, e ele ou um ajudante apresentava a agenda do final de semana e a hora em que ele ia conversar conosco a sós. Quando acabavam os compromissos do dia e voltávamos para a casa dele, sempre tinha essa reunião. No meu caso, neste primeiro final de semana, minha “sessão” foi à noite. Eu estava em um quarto de hóspedes lá embaixo, no piso inferior, recebi uma chamada no quarto, era ele e eu subi para nossa conversa. Cheguei lá e fiquei sozinho com ele no quarto. Disse que eu era gay, enumerou lá uns episódios do seminário, e voltou ao mesmo assunto de sempre: pornografia, se eu tinha atração por alguém do seminário, e por aí vai... terminou o esculacho psicológico e fui dormir. Nesse ano ainda passei mais um final de semana com ele, no segundo semestre, e no começo de 2013 fui para o edifício maior do internato, com 18 anos.

Depois de um tempo, um colega seminarista se apaixonou por mim. A gente ficou muito amigo, muito próximo, e ele se apaixonou... no começo eu resisti, não sabia nem se eu era mesmo homossexual, mas acabei me envolvendo e tendo um relacionamento com ele. Depois de uns meses, no final do primeiro semestre, virou um escândalo. Colegas flagraram a gente junto e contaram para todo mundo. A gente ia sair de férias no final daquela semana, lembro bem. A gente sabia que ia ser expulso e não ia voltar para o próximo semestre. Resolvi chamar dom Alberto e pedir para conversar com ele. Perguntei o que ia acontecer, se era para eu levar todas as minhas coisas embora. Ele respondeu que não podia fazer nada, que era para eu ir para minha casa e aguardar.

Três dias depois recebi uma ligação do reitor, dizendo que tinha passado a situação para dom Alberto e que ia me levar para conversar com ele. Chegamos lá e os outros dois rapazes, o menino com quem eu estava tendo um caso e o outro com quem ele estava brigando e denunciou a gente, já estavam lá. Ele conversou com um por um. Eu fui o último. Todos foram embora e eu entrei para conversar com ele, que se mostrou preocupado e afetuoso. Falei tudo o que tinha acontecido para ele, e perguntei o que ia acontecer. Ele disse que não dava para eu voltar para a formação agora, que era para eu me afastar. ‘Então lhe proponho três coisas. Você não vai para casa para não dar bandeira lá, vamos achar uma paróquia para você ficar até a poeira baixar. Segundo, vamos fazer um caminho pessoal de construção e terceiro vou te encaminhar para uma terapia especial, com psicólogos. Eu concordei.

Nesse período de férias fui lá passar o final de semana com ele de novo. Foi aí que começou o tratamento espiritual propriamente dito. Consiste primeiro em tratar a homossexualidade como uma doença que tem cura, e ele é a cura para essa doença. Te dá o livro, que oferece uma espécie de embasamento teórico para o que ele faz, e submete você a sessões de terapia profissional que eu desconfio que servem para passar relatórios para ele depois e ajudá-lo a te domar melhor, porque ele sempre sabia de detalhes. Na primeira parte você tem que se assumir como homossexual. No meu caso isso aconteceu com muito assédio moral, tortura psicológica, com ele sempre muito agressivo, gritando e batendo na mesa, falando coisas horríveis e me colocando em uma posição inferior desde que começaram os encontros. Fora as ameaças, sofri muitas ameaças, eu não acreditava no pesadelo que estava vivendo naquele momento. Aí tive que admitir, mesmo sem saber se era mesmo homossexual, essa questão sempre foi uma confusão muito grande na minha cabeça. Uma hora eu disse que era, levou várias sessões para eu admitir.

Feita essa confissão, ele começa a segunda parte do ‘tratamento’. Intensifica as ameaças exigindo sigilo absoluto de tudo. A corda sempre estoura para o lado mais fraco, quem fica para o final da novela sempre chora, ele usava esse tipo de frase de efeito. Não podia contar nada para ninguém. No meu caso, ele fazia o que queria comigo. Chegou a me ameaçar de contar para a minha família o que estava acontecendo. Ficava me xingando enquanto abusava de mim. [Me chamava de] bicha, veado, esse tipo de coisa, e dizia que se eu não melhorasse, não obedecesse para sarar, ele ia contar tudo pra minha família, ia contar para minha mãe tudo o que eu era e tinha feito.

Tem essas sessões de tortura psicológica, aí começam os exercícios de ‘curar a nudez’, que era ficar os dois nus juntos trancados no quarto, algumas vezes com rezas em lugares específicos do seu corpo... ele dizia que um homossexual não conseguia ficar sem roupa na frente de outro homem nu, então que fazer esse exercício era importante até conseguir resistir. Algumas vezes eu achei que ele ia me beijar, chegou a pegar no meu pênis tentando uma ereção minha, fez eu me masturbar na frente dele...

Não quero entrar em mais detalhes, já contei tudo várias vezes para o pessoal da Igreja, polícia, ministério público, agora entrevista… É muito doloroso falar disso tudo. Passei por essa provação de julho a outubro de 2013, foram cerca de dez encontros, dois ou três por mês. Acabei ficando em casa nesse período, e disse que estava para ser enviado para um estágio em uma paróquia.

Em outubro fui mandado como ajudante do padre a uma paróquia de fato. Sete meses depois voltei ao seminário como aluno interno, conforme ele havia prometido, e um ano e meio depois de ter saído pela primeira vez, em dezembro de 2014, fui embora de vez. Eu tinha ficado revoltado, arrumava muita confusão e não me adequei mais ao internato. Nessa época já não me encontrava mais com dom Alberto. Hoje não sei exatamente por que acabei aceitando ser submetido a tudo isso. É uma construção, você fica muito fragilizado psicologicamente, preso àquilo. Chega um determinado momento em que você sabe o que vai acontecer e vai mesmo assim, se sente obrigado. Você chega a duvidar de si mesmo. Se você é ou não é, se você realmente é uma pessoa sórdida, que não presta, você chega a acreditar nele, fica completamente manipulado e transtornado. Ele te joga para baixo com muita psicologia, você perde a noção e o chão.

E junto ele oferece uma esperança, é ele quem decide se você continua na Igreja ou não, te chantageia, se coloca em uma posição de benevolência com você. Pelo menos no meu caso, tudo isso foi uma construção muito forte. Fiquei paralisado e demorei para perceber, elaborar tudo o que tinha acontecido”.

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