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Ele organizou um ato antirracista em Curitiba e acabou ameaçado nas redes, acusado de “terrorista”

Gabriel Figdan foi articulador de ato na capital paranaense, onde, ao final, houve repressão policial e quebra-quebra, que o ativista atribui a infiltrados. Bolsonaro aposta em estigmatização de atos

Cartaz de protesto em Curitiba.
Cartaz de protesto em Curitiba.Gabriel Figdan/arquivo pessoal
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Quando decidiu ajudar a organizar um ato antirracista em Curitiba, Gabriel Figdan jamais imaginou que fosse precisar se esconder na casa de um amigo e buscar ajuda jurídica para lidar com as ameaças que começou a sofrer logo após o fim do protesto, na noite de segunda-feira. A manifestação reuniu cerca de 1.000 pessoas. Foi considerada um sucesso, já que empunhar a palavra de ordem contra opressão dos negros não é exatamente a coisa mais fácil na capital paranaense, que se vê como essencialmente branca —19,7% se declara preta ou parda, segundo o IBGE—. Mas acabou em repressão policial, quebra-quebra e com o ativista Fidgan, um ator de 21 anos, tachado de “terrorista queimador de bandeira”.

Iniciado no fim da tarde na Praça Santos Andrade, local que tradicionalmente reúne movimentos sociais e políticos em Curitiba, o ato, como em outras partes do mundo, usou palavras de ordem contra a violência policial contra os negros, na esteira da morte de João Pedro Mattos, de 14 anos, durante uma operação policial em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, e de George Floyd, nos EUA. Era também, segundo Fidgan, a oportunidade de lembrar que a pauta antirracista tem de ser permanente. “Segurança me persegue no mercado, pessoas me chamam de neguinho na rua. Já fui chamado de macaco em um jogo de futebol. O antirracismo deveria ser pauta o tempo todo”, diz.

O ato teve discursos e depoimentos. Ao final, parte dos manifestantes saiu em uma passeata pelo centro de Curitiba, o que não era a orientação das entidades envolvidas na organização. Foi quando alguns participantes quebraram estações-tubo (pontos de ônibus da cidade), vidros de bancos e queimaram a bandeira do Brasil em frente ao Palácio Iguaçu, sede do Governo estadual. Tiros de bala de borracha e bombas de gás lacrimogêneo foram usadas pela Polícia Militar para dispersão.

“Antes disso, o ato foi um sucesso. Reuniu muitas pessoas, teve uma atmosfera esperançosa, por dias melhores”, lamenta o ator. Figdan e as entidades envolvidas divulgaram uma nota em que afirmam que os atos de vandalismo são “suspeitos", e "representam a presença organizada de infiltrados que desejam a criminalização do movimento”. Também criticaram “o uso de força excessiva por parte da polícia”, que, para eles, demonstra a incapacidade de diálogo e a opção pela agressão.

Da noite de segunda-feira até o fim da tarde da terça, Gabriel Figdan teve suas redes sociais inundadas de comentários como: “você merece apanhar e sangrar muito”e de que é “terrorista queimador de bandeira”. Também divulgaram seu telefone, e-mail e o endereço de casa, o que o levou a se abrigar na residência de um amigo até seu advogado buscar as medidas legais necessárias — ele anuncia que vai registrar um boletim de ocorrência nesta semana e que desativou o seu perfil no Facebook e Twitter. “Eu não consegui dormir desde ontem. Estou com medo e inseguro. A gente não sabe o que as pessoas são capazes de fazer, mas vamos provar que não tenho nenhum envolvimento com isso [com os atos de vandalismo]. Era para ter sido um ato histórico e pacífico, para dar espaço a nossa voz negra”, disse o ator.

Vários intelectuais e analistas criticam a ênfase em se falar nos distúrbios em meio a protestos, como em Curitiba, como capazes de deslegitimar as pautas defendidas e estigmatizar seus organizadores. Destacar apenas a depredação é a aposta tanto de Donald Trump nos EUA como de Jair Bolsonaro no Brasil. Na terça, o presidente de brasileiro chamou de “marginais” e “terroristas” os manifestantes antifascistas e disse que, no país, a questão racial é diferente da norte-americana.

As declarações de Bolsonaro foram dadas a apoiadores, que divulgaram vídeo nesta quarta. Nas imagens, Bolsonaro cita a manifestação na capital paranaense e afirma: “Não podemos deixar que o Brasil se transforme no que foi há pouco tempo o Chile. Não podemos admitir isso daí. Isso não é democracia nem liberdade de expressão. Isso no meu entender é terrorismo. E a gente espera que esse movimento não cresça porque o que a gente menos quer é entrar em confronto com quem quer que seja.” No mesmo sentido, o vice-presidente Hamilton Mourão escreveu em artigo no Estado de S. Paulo. “Baderneiros são caso de polícia, não de política”, generalizou.

Para a ativista curitibana Amanda Mendes, 21 anos, o desfecho em Curitiba, é triste. "Acabou encobrindo todo o nosso ideal” , lamenta a estudante de arquitetura e integrante do Movimento Feminista de Mulheres Negras, que frisa que a ideia do ato foi proporcionar um lugar de fala para diferentes experiências. “Teve fala de mulheres pretas, de um menino do Axé, de um menino negro trans. A gente tem que conhecer a nossa história. Curitiba é conhecida por ser uma cidade modelo e europeia, mas as pessoas têm que perceber que os negros escravizados trazidos ao Paraná são parte edificadora dessa cidade”. Ela cita como exemplo a participação de Enedina Marques, primeira engenheira negra do Brasil, formada pela Universidade Federal do Paraná, que participou de projetos como o do prédio da Biblioteca Pública do Paraná. “A cada 23 minutos um jovem negro é morto no Brasil. Era pra gente bater nessa tecla e sermos ouvidos. Queria que as pessoas vissem que o ato foi pelas vidas negras tiradas todos os dias”.

Curitibano, Gabriel passou os últimos dois anos no Rio de Janeiro realizando trabalhos como ator e participando de iniciativas sociais como Bando Cultural Favelados da Rocinha FAVELA, que realiza oficinas de arte na comunidade. Voltou a Curitiba no início deste ano. As situações racistas são recorrentes, diz o ator. “Segurança me persegue no mercado, pessoas me chamam de neguinho na rua. Já fui chamado de macaco em um jogo de futebol” enumera. “Por isso o antirracismo deveria ser pauta o tempo todo”.

Coordenador Estadual da Juventude do Cidadania 23, Eduardo de Souza Lelis reforça que houve orientação para o ato não seguir com passeata. “Achamos que poderia dar problema e não queríamos aglomerar por causa da pandemia. Depois disso fui embora. O que aconteceu depois vi de casa pelos vídeos nas redes sociais”.

O movimento se preocupou com as medidas sanitárias necessárias por conta da pandemia da covid-19, e solicitaram que todos estivessem de máscara, higienizassem as mãos e evitassem se aglomerar. Houve ainda arrecadação de roupas de frio para pessoas em situação de rua. “Recebemos bastante material e poderemos abençoar as pessoas de rua. Mas não vou poder nem sair entregar por causa das ameaças. Tenho outros amigos que vão fazer isso”.

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