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Rezar para os “santos flagelados”, uma romaria com dor e história no Ceará Famílias inteiras chegavam aos montes nos campos de concentração do Ceará para fugir da seca, seduzidas pela promessa de serviço e alimentação pelo Governo. Dos seis campos que existiram lá, apenas um deles mantém as ruínas de pé, na cidade de Senador Pompeu. Ali, milhares de pessoas caminham cerca de seis quilômetros todos os anos para homenagear os que morreram de fraqueza naqueles tempos. E lhes rogam promessas, porque há uma crença no sertão de que os flagelados sofreram tanto em vida que viraram santos Milhares de pessoas se enfileiravam pelos caminhos de terra batida que cortavam os casarões da Barragem do Patu, em Senador Pompeu, para tentar escapar da seca. Chegavam em um dos seis campos de concentração que existiram no Ceará caindo de fraqueza, movidos pela notícia que se espalhara no sertão naquele 1932, de que ali o Governo dava comer e trabalho para os retirantes construirem um açude que havia sido prometido desde a Seca do Quinze. Todos os anos, milhares de pessoas participam de uma caminhada para homenagear aqueles que morreram nestes campos de tormento. Exaustos de cansaço e fome, os retirantes da seca descobriam o engano na chegada. O terreno tinha alguns casarões, onde se distribuía feijão. Mas quem chegava ali precisava se abrigar em barracos ocupados. Milhares de pessoas perdiam a própria identidade para o rótulo de flagelado. E ali, deixavam de se sentir gente para viver como bicho, dormindo ao relento e esperando em longas filas o que chamavam de "ração", um feijão preto difícil de cozinhar. Vigiados por funcionários do Governo, não podiam deixar aquele lugar. Todo mês de novembro, no fim de semana depois das celebrações de finados, milhares de pessoas participam de uma caminhada. É uma romaria para pedir graças e pagar promessas feitas às "almas da barragem", agora vistas como santas. Sofreram tanto de fome e de sede, antes de morrerem e terem seus corpos enterrados em imensas valas comum, que se acredita que estão agora muito próximas de Deus. Os mortos eram tantos que acabavam sepultados aos montes, com cerca de 25 amontoados em valas abertas na terra rasa toda manhã. Se o número não fechasse, os buracos permaneciam, à espera dos novos mortos que apareceriam na madrugada. Hoje, há um cemitério no local, mas é apenas simbólico. Por isso, velas são acendidas aos montes ao final da caminhada. A água é despejada sobre as tumbas simbólicas daquela imensa vala comum. Molham a terra do que chamam de "campo santo". Ao final da caminhada, uma missa é celebrada em homenagem aos que perderam a vida na seca. Os romeiros costumam deixar pão e água no simbólico cemitério da barragem do Patu. A oferenda para quem morreu de fome e de sede é uma forma de demonstrar empatia por aquele sofrimento. Mesmo quem não acompanha a caminhada, organizada há três décadas pela igreja católica, costuma acender velas nas fachadas de casa para homenagear aos que morreram nos campos de concentração. Ao longo da caminhada, religiosos fazem preces e relembram daquela gente, que vestia "roupa de saco" e tinha os cabelos raspados para conter os piolhos. É bastante comum ver romeiros com os pés descalços, pagando promessa aos "santos flagelados". Não existem dados oficiais sobre quantos corpos foram enterrados nos arredores dos campos de concentração do Ceará, incluindo o de Senador Pompeu. Mas o então presidente Getúlio Vargas, em discurso publicado em livro no início da década de 1930, estimava que cerca de um milhão de pessoas tivessem passado por esses locais. E usava "campos de concentração" para se referir a esses espaços. Durante a caminhada religiosa, o discurso também é político e repreende a política daquele Governo que tentava, a todo custo, manter os retirantes longe da Capital Fortaleza. Para isso, multiplicaram o "curral humano" inventado na Seca do Quinze e mantiveram milhares de pessoas presas, sob a guarda de cercas e de vigias.