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Crônica
Texto informativo com interpretação

Os antiperegrinos

Caminhar seis horas por dia, durante mais de uma semana, para chegar à catedral de Santiago e fracassar

Rebeca Carranco
Peregrinos no Caminho de Santiago.
Peregrinos no Caminho de Santiago.Óscar Corral

Com o terço na mão, uma mulher fala alto. “Ave-Maria Puríssima”, balbucia. O resto do grupo repete a reza. São todos brasileiros. Ultrapassar outros peregrinos no Caminho de Santiago é sempre um prazer, um desafio pessoal. “Bom caminho!”, você diz ao passar por eles, sorridente, simulando boa fé. Além de satisfatório, no caso dos brasileiros é necessário: não há quem se concentre em alguma coisa com semelhante litania de fundo.

A primeira vez que topamos com eles é de noite. Porque se começa a caminhar à noite, com uma dessas lanternas presas na testa (“para 30 quilômetros de merda vocês saem com as lanternas?”, recrimina logo um amigo, talvez com razão). O objetivo é ir de uma cidadezinha próxima de Astorga até Santiago. 243 quilômetros de distância, indica o primeiro marco. Isso é muito ou pouco? Não faço ideia. É uma nebulosa, uma distância sem sentido para quem nunca fez o Caminho.

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Nas costas, uma mochila com 7,5 quilos. “Não pesa nada!”, dirão. Bom, tudo depende do que é nada e do que é muito em um plano de viagem que consiste em caminhar seis horas por dia, mais de uma semana, por León, Lugo e La Coruña. Confesso que a mochila acabou nos ombros de outra pessoa, no único ato piedoso do Caminho. E isso que hoje até a mochila pode viajar de táxi, pagando entre três e cinco euros. “Se deixasse a mochila, me sentiria como alguém que faz uma trilha, não uma peregrina”, diz uma mulher 30 anos mais velha do que eu sem desviar o olhar de uma televisão, em um albergue, onde Pedro Sánchez anuncia novas eleições.

O Caminho de Santiago começou na Idade Média para prestar homenagem às relíquias do apóstolo, que veio à Hispânia propagar a palavra de Jesus Cristo porque não havia Twitter. “Fazer essa viagem trazia uma enorme compensação espiritual, além de uma riqueza de experiências e uma força física e mental que faziam do peregrino um verdadeiro herói, um modelo de coragem e virtude para seus vizinhos”, explica o livro Peregrinar a Compostela en la Edad Media, de Jaime Nuño e Chema Román.

243 quilômetros de distância, indica o primeiro marco. Isso é muito ou pouco?Não faço ideia. É uma nebulosa, uma distância sem sentido para quem nunca fez o Caminho

Busco dentro de mim durante as seis horas diárias de caminhada entre montanhas, rios e também asfalto, mas não encontro perguntas, nem tampouco respostas. Nem a mais mínima profundidade de pensamento ou espiritualidade. Apenas andar com bolhas nos dedões, a cinco quilômetros por hora, se possível, para estar à altura do meu grupo de veteranos. Também não vejo reconhecimento nos meus vizinhos quando lhes conto as férias passadas: “O Caminho? Isso é coisa de velhos, não?”.

Em Peregrinar a Compostela en la Edad Media se conta que os peregrinos faziam o caminho por três motivos: porque queriam, por um voto diante de Deus ou para cumprir uma penitência. Podia ser inclusive uma “condenação judicial imposta por um crime”. O condenado, continua o livro, “podia viajar custodiado, acorrentado e até nu, para maior escárnio”. Pena que não mantenhamos as tradições, dariam para muitas transmissões ao vivo.

Nesse caso, a peregrinação é voluntária, mas sem a esperança de grandes milagres. Nem recuperar a visão, nem voltar a andar. Fazer isso rápido e talvez perder alguns quilos, apesar do primeiro café da manhã (massa e café com leite), do segundo café da manhã (sanduíche de meia baguete), do almoço (primeiro prato, segundo e sobremesa), do lanche (o que vier) e do jantar (primeiro prato, segundo e sobremesa).

Poucos dias depois, os laços se fortalecem entre os caminhantes. Quem ontem ousou te ultrapassar, hoje foi ultrapassado. A chuva aperta, mas não afoga, e os compeed [curativos para bolhas] protegem os pés machucados. Meu pai não precisa deles: os nove caminhos nas costas e uma infância brincando descalço lhe fizeram calo e o abençoaram com a velocidade do raio. Nossos brasileiros do terço não estão muito atrás, mas sempre rezam. Seja em uma subida infinita, em um caminho pedregoso na noite negra ou ao passar diante da uma comunidade hippie, que também existem. E é compreensível: 80% dos peregrinos leram o livro de Paulo Coelho sobre o Caminho, diz um sábio taxista.

80% dos peregrinos leu o livro de Paulo Coelho do Caminho, afirma um sábio taxista

Muitos outros, especialmente os norte-americanos, viram The Way, em que Martin Sheen vai espalhando as cinzas de seu filho que morreu no Caminho. Um momento especialmente espiritual do filme é quando os quatro amigos de viagem param diante da Cruz de Ferro, que antes servia de guia aos peregrinos. Em silêncio, tiram algumas pedras que levam, leem alguns versículos e as depositam ali, cerimoniosamente, em comunhão com Deus. “Que bobagem”, solta minha ímpia comitiva ao passar ao lado da cruz, sem diminuir o ritmo, cravando os bastões na terra e sem levantar a cabeça.

Mas não por isso faltamos com a cortesia e a hospitalidade do bom peregrino. “As pretas são as boas”, gritamos a alguns asiáticos que nos veem colhendo amoras das árvores. É difícil adivinhar se são coreanos, a nacionalidade que todo mundo diz que inunda o Caminho depois de um reality gravado na travessia e do livro de uma jornalista bastante conhecida do país. Na verdade, representam 1,7% de todos os caminhantes que vieram no ano passado (327.378), segundo as estatísticas do Escritório do Peregrino. A maioria é de espanhóis (44%), italianos (8,2%), alemães (7,7%), norte-americanos (5,6%), portugueses (4,4%) e franceses (2,6%).

Na Idade Média, quando se chegava ao Monte do Gozo, a alegria invadia o peregrino, que via a catedral de Santiago e terminava os cinco quilômetros com os pés descalços. No meu grupo não há tempo para paralisia da alma. Precisamos ir logo para o Escritório do Peregrino pegar a credencial. Temos o número 584. Na tela, como se fosse a vez de renovação do RG, vão distribuindo o jogo. 580, 581... Estamos muito perto. A felicidade espreita até que vemos emergir na fila uma mulher com o terço na mão. É o grupo de brasileiros. Têm o número 581. Eles nos ultrapassaram. Também à frente está a balança: 1,5 quilo a mais. O Senhor coloca cada um em seu lugar.

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