A marcha contra a Constituição e a PGR
Na configuração desejada para a Procuradoria-Geral da República, contavam pontos relativizar a destruição ambiental na Amazônia, legitimar a força privada e a violência no campo e reinaugurar o projeto assimilacionista para os povos indígenas
A utilização das Constituições contra a sua própria efetivação não é uma prática nova nas democracias contemporâneas, mas o uso dessa estratégia tem sido acelerado e normalizado no contexto institucional brasileiro. A forma como foi conduzido o processo de escolha do chefe da Procuradoria-Geral da República (PGR) é a mais recente etapa no desmonte dos avanços erigidos a partir da Constituição de 1988.
Mais do que a escolha de A ou B para o cargo, ou a pertinência do debate sobre a lista tríplice e a insuficiência da interpretação literal do texto constitucional, a impropriedade dos requisitos para a seleção saltam aos olhos, pois a falta de compromisso com o texto constitucional foi a diretriz principal. O abandono de cada uma das pautas que representam a missão institucional do Ministério Público Federal (MPF) foi abordado publicamente como condição para uma nomeação, como se a Constituição pudesse ser negociada.
Na configuração desejada para a PGR, contavam pontos relativizar a destruição ambiental na Amazônia, legitimar a força privada e a violência no campo e reinaugurar o projeto assimilacionista para os povos indígenas. A defesa do Estado laico, o respeito à diversidade e a promoção da educação em direitos humanos deveriam ser prontamente descartados. A luta contra a corrupção já não deveria mais ser priorizada.
Esqueceu-se que o compromisso da instituição e de seus membros não é feito com o Poder Executivo, mas com a sociedade brasileira. A defesa e a promoção de direitos pelos quais muita gente já arriscou a vida, como o histórico procurador Pedro Jorge, foi uma decisão do Constituinte, que viu no Ministério Público mais um agente pela transformação do Brasil em um país mais justo.
Pode-se dizer, em síntese, que a restrição de canais democráticos e independentes do Estado brasileiro ganhou mais um capítulo. Após a extinção de conselhos, o enfraquecimento do sistema de combate à corrupção, a defesa de um programa inconstitucional de restrição de liberdades e o estímulo a violações de direitos indígenas e do meio ambiente, avança-se agora sobre a instituição independente que justamente possui o papel de lutar contra as arbitrariedades anteriores.
É certo que o MPF, como todas as instituições, possui erros e deve submeter-se a um debate público, aberto e transparente acerca de suas atividades. Contudo, a crítica ao desempenho de seu papel não pode afastar a percepção sobre a gravidade do momento. Mais do que atacar a independência da instituição, caminha-se a passos largos para a destruição da própria Constituição.
Não há, porém, tempo para lamentar. Faz escuro, mas cantamos, como disse o poeta. O projeto “contraconstitucional” sofre a resistência em forma de trabalho: em todos os cantos, membros continuam batalhando por justiça social com diligência, técnica e independência, atentos aos seus deveres constitucionais e à sociedade. Não há luto que não se transforme em luta. Por direitos, pela Constituição e pela democracia.
Julio José Araujo Junior é procurador da República no Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros é procurador da República no Estado de Goiás. Mestre em Estado, Direito e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB).
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