A incansável busca pela história do irmão desaparecido do Araguaia
Há 40 anos, Mercês Castro adentra as matas do norte do país e conversa com moradores em busca dos restos mortais de Antônio Teodoro de Castro, o irmão assassinado durante a guerrilha pelos militares
Há 40 anos, Mercês Castro tenta romper o silêncio que se impôs no Brasil sobre o Araguaia, na divisa da região Norte e Centro-Oeste do país, desde que os militares começaram uma caçada a militantes do PCdoB que haviam ido para a região com armas em punho e o sonho de uma revolução socialista contra a ditadura militar (1964-1985). Mercês tinha 18 anos, quando subiu na balsa de um amigo e navegou pela primeira vez pelo Rio Araguaia. Ela percorreu centenas de quilômetros por água entre os estados do Pará, Tocantins e Maranhão, perguntando baixinho a quem encontrasse: "É verdade que houve uma guerrilha aqui?". Era início dos anos 1980 e, com o país ainda governado pelos militares e as disputas territoriais violentas características da região, as pessoas tinham medo de falar. Mercês precisou ir conquistando a confiança dos moradores aos poucos para tentar reconstruir a história do irmão, Antônio Teodoro de Castro, e um capítulo da história do Brasil protagonizado por cerca de 80 guerrilheiros. Vindos de diferentes Estados do Brasil, eles adentraram a floresta amazônica e se integraram aos camponeses, muitos deles migrantes da pobreza que assolava o Nordeste, entre 1969 e 1974. O objetivo era implantar um levante popular aos moldes da Revolução Chinesa e, a partir da área rural, derrotar a ditadura.
Naquela viagem de balsa, Mercês tentava conseguir qualquer pista que a ajudasse a refazer os passos do irmão Teodoro, rebatizado de Raul quando se incorporou ao movimento sem avisar explicitamente a ninguém da família, que morava em Fortaleza. Caçula em uma casa de nove filhos, Mercês não lembra exatamente quando o viu pela última vez. A memória que guarda é de uma cena corriqueira: no amplo corredor da casa da família, Teodoro — um jovem muito alto e branco — a rodopia. Ela tinha apenas sete anos quando o irmão, que já chamava a atenção dos militares, deixou Fortaleza para estudar no Rio de Janeiro. Ao atingir a maioridade, Mercês decidiu estudar no Centro de Ensino Superior do Estado do Pará (CESEP), em Belém, para ficar mais próxima das pistas de Teodoro, com quem pouco conviveu. O irmão, entretanto, sempre esteve simbolicamente presente em casa, tendo seu prato posto na mesa da família durante cada refeição mesmo quando seu paradeiro era desconhecido. Mercês queria saber mais sobre aquele homem que, segundo lhe contavam, havia defendido a vida dela. E de alguma forma ela buscava uma maneira de devolvê-lo à família.
A mãe deles, Benedita Pinto de Castro, já tinha oito filhos quando engravidou de Mercês e, diante da dificuldade que seria colocar mais uma criança no mundo, amigos sugeriram durante uma visita que ela tomasse chás abortivos. Quando todos foram embora, Teodoro correu para tentar convencê-la a ter a criança. "Mãe, não faça isso, não. Eu ajudo a senhora a criar", suplicou, aos 13 anos de idade. No dia seguinte, acordou muito cedo e colocou as verduras da horta da família em uma bacia.
— Tu tá indo pra onde? — perguntou a mãe.
— Vou vender pra ajudar.
— Não precisa. Você estude que me ajuda mais.
Teodoro seguiu o conselho, o mesmo do qual a mãe se arrependeu tempos depois, mesmo quando insistia em não acreditar que Teodoro havia de fato ido para a Guerrilha do Araguaia. "Se ele foi pra esse negócio, foi porque lia demais", dizia. E temia que a história se repetisse com algum dos outros oito filhos, também ávidos por leitura. Teodoro estudava Farmácia na Universidade Federal do Ceará, participava do movimento estudantil e militava no PCdoB [antigo Partido Comunista do Brasil]. O partido era hegemônico entre a esquerda antes do golpe militar de 1964 e, inicialmente, contrário à luta armada. Mas com a instituição do AI-5, a mais rigorosa normativa da ditadura, ganhou espaço dentro do partido a narrativa de que só seria possível enfrentar os militares por meio da luta armada. A ideia dos dissidentes da sigla responsáveis pela guerrilha não era exatamente retomar o regime democrático, mas implantar o socialismo aos moldes do que aconteceu em Cuba e na China.
Teodoro era atuante no PCdoB e chamava a atenção dos militares por participar de movimentos que criticavam o Governo. Transferiu o curso de Farmácia para o Rio de Janeiro em 1969 a pedido da mãe, que temia perseguições mais graves contra o filho. Não adiantou. No Rio de Janeiro, ele seguiu a militância. Chegou a presidir a Casa Universitária e decidiu partir para o Sul do Pará com os companheiros de partido em busca da sua "revolução". Antes de ir, enviou um cartão para a família em que dizia: "Eu amo muito vocês, eu nunca soube foi dizer". E separou uma série de cartas e livros que seriam enviados por uma amiga aos pais e aos irmãos nos anos seguintes, enquanto ele estivesse na mata lutando pelo que acreditava. As correspondências tentavam fazer os parentes acreditarem que ele seguia estudando e não davam pistas de onde realmente estava.
O que se sabe até agora, por meio de depoimentos gravados por familiares e de documentos e testemunhos contidos nos relatórios da Comissão Nacional da Verdade (CNV), é que Teodoro chegou ao Araguaia em 1971, mas os familiares só souberam que ele havia ido para a guerrilha oito anos depois. Descobriram ao vê-lo na lista dos considerados subversivos pelo Governo militar, nos anúncios que passavam nas salas de cinema, pouco antes do filme começar. "A gente sabia que ele estava desaparecido, mas não sabia onde", conta a irmã Mercês. Teodoro integrou o destacamento B no Araguaia. A guerrilha era composta por uma comissão, responsável por coordenar três destacamentos, cada um deles com pouco mais de 20 combatentes. Alguns deles haviam feito treinamento na China para participar da "revolução popular", e a região do Araguaia foi escolhida por uma estratégia tática: a mata fechada os ajudaria em uma disputa em que estavam em menor número e, naquela região dominada pela pobreza, poderiam conseguir apoio popular.
Por conta do trabalho, Mercês deixou o Pará e se mudou para Curitiba, mas nunca deixou de lado a odisseia que encampou aos 18 anos em busca do irmão. Com os custos das viagens divididos com os irmãos, ela retornou ao Araguaia muitas vezes. "Se você me pergunta quantas, já não sei. Perdi as contas", diz. As matas fechadas da década de 1970, quando aconteceu a guerrilha, talvez já não pudessem dar hoje a mesma proteção esperada pelos guerrilheiros. Boa parte do território virou latifúndio, com plantações e áreas de criação de gado. Os trabalhadores rurais que foram testemunhas oculares da Guerrilha do Araguaia vivem em casas distantes dos centros mais povoados. "Eles se escondem", diz Mercês.
A cada ida à região, Mercês levava câmera fotográfica, gravador e a foto do irmão, na esperança de que alguém o reconhecesse e desse pistas sobre o paradeiro de seus restos mortais. Com a ajuda de guias, ela andava pelas matas hoje bem mais devastadas da floresta em busca de qualquer informação sobre aquela época. Documentava o que podia das conversas com os moradores e cruzava as informações que colhia ali com pesquisas acadêmicas e com os escassos documentos que conseguia sobre o Araguaia, já que os militares nunca abriram de fato todos os arquivos. Em depoimentos à CNV, eles argumentavam que parte deles foi queimada. Há 10 anos, porém, o major Sebastião Curió — um dos principais líderes militares que combatiam a guerrilha — abriu arquivos que guardava em casa. Revelou que o Exército executou 41 guerrilheiros quando eles já não ofereciam risco às tropas.
Em entrevista ao jornalista Leonencio Nossa, para o livro Mata!, Curió admitiu ter ele mesmo atirado em Teodoro, conhecido na região como Raul. Ele conta que Raul e Simão foram levados até o sítio de Manezinho das Duas, um posseiro que atuava como guia para o Exército. Ali, na cidade de Brejo Grande do Araguaia (a 650 quilômetros da capital Belém), Curió mandou que os guerrilheiros sentassem no chão, quando ouviram um barulho na mata que o major achou ser de outra patrulha militar que não deveria estar ali. "Foi quando abrimos fogo nos guerrilheiros. Naquele momento, atingi Raul no peito", conta Curió. Mesmo depois que os militares derrotaram os combatentes, uma operação chamada Limpeza foi desencadeada para apagar os rastros da atuação militar, conforme destaca a denúncia do Ministério Público Federal contra Curió pelo assassinato de Teodoro.
Há décadas, Mercês tenta entender como o irmão viveu na guerrilha, se debruçando sobre reportagens, trabalhos acadêmicos e documentos de cartórios para tentar confirmar o que escuta dos camponeses. No início de sua investigação, ela conta que militantes de partido apontavam que Teodoro teria sido morto em um jipe enquanto entregava os companheiros aos militares. "Eu tinha um traidor na mão", diz Mercês, falando da fama que o irmão carregava até ali. Mas quando iniciou suas incursões pelo Araguaia, se deparou com histórias do irmão que não condiziam com essa imagem. Ela encontrou uma família que havia abrigado Teodoro quando ele tentava se reintegrar à Guerrilha em 1972. Teodoro havia sido ferido à bala em um conflito com militares e, acompanhado da guerrilheira Walquíria Costa, chegou a ir para a vizinha Goiás em busca de atendimento médico. "Seria muito fácil sair, mas eles decidiram voltar. Os dois se reintegraram à guerrilha em dezembro de 1972", conta. Mercês ouviu a história do casal que recebeu os dois militantes na casa deles —e cujos nomes ela prefere preservar por "segurança". Este casal, vindo do Nordeste em busca de terra, lhe relatou que, vendo a situação de pobreza na casa e a escassez de alimentos para seus oito filhos, os guerrilheiros decidiram não levar nada além de um punhado de farinha e um toco de vela com eles. Passaram uma noite ali e seguiram em busca dos demais companheiros. "Essas histórias não batiam com a de um traidor", defende Mercês.
Chamados de terroristas pela maioria dos militares, os guerrilheiros tiveram apoio da população nos primeiros anos da guerrilha. Desde que começaram a chegar na região, ainda no final dos anos 1960, abriram pequenas escolas e davam aulas gratuitas em uma região dominada pela pobreza, onde o Estado não chegava. A tática era conquistar os camponeses, e centenas deles acabaram apoiando o levante dos integrantes do PCdoB. Mas quando os militares iniciaram as operações de combate aos socialistas, em 1972, os conflitos foram se agravando e deixando um rastro de sangue também entre os moradores locais —muitos deles foram acusados de cúmplices, mesmo que não fossem combatentes, e outros obrigados a servirem como guias nas matas ao Exército. Os guerrilheiros então perderam apoio popular e passavam a levar alimentos das casas que encontravam no meio das matas.
Três campanhas foram desencadeadas para sufocar o movimento pelos militares entre 1972 e 1974, sendo que só a última delas (Marajoara) teve êxito. Foi também a mais sangrenta. Nos relatórios da CNV, militares admitem torturas e execuções, muitas delas na Casa Azul, local para onde os "subversivos" eram levados ao serem capturados. “O inimigo foi surpreendido com a rapidez e forma como foi executado o desembarque e infiltração das patrulhas na mata. Em três dias, 70% da rede de apoio estava neutralizada", diz o Relatório Especial de Informações do Ministério do Exército. Na região do Araguaia, conta Mercês, ainda hoje paira uma sensação de vigilância, e os moradores ainda têm medo de falar sobre o assunto.
As descobertas de Mercês durante as excursões ajudaram o Estado a descobrir que Teodoro foi assassinado pelos militares em 1974, sob o comando do major Sebastião Curió, que se infiltrou na região como Dr Luchini, um falso funcionário do Incra, para identificar os "subversivos". O Governo só reconheceu a responsabilidade pelo assassinato de opositores políticos por seus agentes do Exército em 1995, com a Lei 9.140, que apresenta o nome de 62 desaparecidos da Guerrilha. Dentre eles, está o nome de Antônio Teodoro de Castro. Moradores da região contaram a Mercês —e depois às autoridades— que Teodoro foi executado junto com Cilon da Cunha Brum, outro guerrilheiro que havia sido capturado dias antes. Três dias depois de preso, Teodoro foi morto a tiros, depois de reclamar de fome e ouvir os militares lhe negarem comida. Os restos mortais dele nunca foram encontrados.
No último mês de março, o Ministério Público Federal ofereceu denúncia à Justiça contra Curió por homicídio e ocultação de cadáver. A ação ainda está em curso, mas há grandes chances de esbarrar na Lei de Anistia. Graças a ela, Curió nunca foi responsabilizado pelo crime nem obrigado a revelar a localização dos corpos. Ainda há 59 desaparecidos do Araguaia. Ao longo desses anos, somente foram encontrados os restos mortais de dois guerrilheiros. Quarenta anos após o início de suas buscas por Teodoro, Mercês ainda tem esperança de encontrá-lo. "Eu comecei procurando meu irmão, mas hoje eu procuro todos eles", diz.
Seus irmãos se espalharam por vários estados do Brasil, mas sempre que algum deles retornava à Fortaleza, a mãe perguntava se alguém havia tido notícias do filho. Ela nunca acreditou (ou pelo menos sempre negou acreditar) que Teodoro estivesse, de fato, servindo na Guerrilha do Araguaia. Mas pediu muitas vezes a todos eles: "Traz ele pra cá, nem que seja pra gente dar um enterro pra ele e fazer uma missa. Pra eu saber que ele está ali, que não está com fome". As palavras ditas tantas vezes pela mãe, falecida há 15 anos, ainda soam como um guia para Mercês: "Eu acho que devo isso a eles".
Ela, que já perdeu as contas de quantas vezes foi ao Araguaia, se prepara para uma nova expedição. Quer investigar alguns pontos que mapeou e que lhe dão esperanças de encontrar os restos do irmão. Está disposta a se enfiar quantas vezes for preciso entre as matas, a andar sobre a lama que chega aos seus joelhos, mesmo sendo picada por incontáveis mosquitos, correndo risco de vida em uma região até hoje vigiada. Tudo para encontrar Teodoro. "Tem gente que diz pra virar a página. Eu digo: olhe para o seu filho e imagine ele sumindo, se desintegrando. Pronto, não existe mais. Chega a dar um desespero né? É isso que nós passamos. Não tem como virar a página", finaliza.