“Cortar recursos da ciência é permitir que o futuro de crianças pobres, como eu fui, fique para trás”
Após cortes anunciados pelo Governo Bolsonaro nas pesquisas e universidades públicas, estudantes vão às ruas para defender o investimento na área e mostrar as aplicações práticas das pesquisas acadêmicas
Centenas de estudantes marcharam pela Avenida Paulista, na tarde da última quarta-feira, contra a asfixia financeira gerada nas universidades públicas pelo corte de recursos anunciado pelo presidente Jair Bolsonaro. Andavam devagar, dispostos a parar e conversar com as pessoas que passavam na rua sobre suas pesquisas —e o impacto prático que elas podem ter na sociedade, mesmo que não seja a tão curto prazo. Tentavam sensibilizar a população sobre os graves efeitos dos cortes orçamentários, que devem afetar desde o pagamento de água e energia nas instituições até mesmo programas de assistência a estudantes pobres.
Neste mesmo dia em que buscavam nas ruas apoio popular para o investimento em ciência no Brasil, foram surpreendidos por uma nova informação que coloca as pesquisas do país na berlinda: o Governo Bolsonaro bloqueou de forma generalizada bolsas de mestrado e doutorado oferecidas pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). O corte atinge não só as ciências humanas —área que o ministro da Educação, Abraham Weintraub, já afirmou não ser prioritária em sua gestão—, mas também as de ciências. Diante dos cortes que consideram graves, estudantes de diferentes cursos mostram suas caras e abrem suas histórias ao EL PAÍS, encampando uma luta para reverter decisões que podem não apenas afetar o futuro profissional deles, mas a produção de conhecimento no país.
"Cortar recursos da educação básica e da ciência é permitir que o futuro de crianças como eu fique para trás"
Ágatha Ribeiro da Silva, 25 anos, mestranda em Medicina na USP
Eu sou a primeira pessoa da minha família a entrar na universidade pública, a conseguir falar inglês e a sair do país. Minha mãe tinha só o Ensino Fundamental. Quando eu e meu irmão já estávamos crescidos, ela conseguiu voltar para o EJA [Educação de Jovens e Adultos]. Depois entrou no Prouni [Programa Universidade para Todos] e conseguiu fazer Análise de Sistemas. Meu pai é tecnólogo de Engenharia. Eu sempre sonhei, desde pequena, em ser cientista. Cresci em um bairro da periferia de São Paulo, no Jardim Capelinha. Quando tinha 11 anos, perguntei pra minha professora da escola se ela achava que era possível eu conseguir entrar na USP. Ela gostava muito de mim, mas vendo a situação da evasão escolar e do ensino de base sem qualidade, ela olhou pra mim meio triste e disse que, se eu me esforçasse muito, conseguiria. E desde então tem sido uma batalha.
Eu consegui vencer quando entrei no curso de Ciências Biomédicas na USP. Depois eu fui fazer um intercâmbio nos Estados Unidos. Fui pelo Programa Ciências sem Fronteiras, fiquei um ano estudando lá e fazendo pesquisa em um laboratório sobre o autismo. E nessa trajetória toda o que eu mais quero é que outras crianças possam ter essa oportunidade que eu tive. Cortar recursos da educação básica e da ciência é permitir que o futuro de crianças como eu fique para trás. Hoje eu faço mestrado. Meu grupo estuda doenças cardiovasculares, que são as que mais matam no mundo inteiro. Todo mundo conhece alguém que morreu de infarto de miocárdio, mas o principal tratamento para isso hoje é o transplante, e as pessoas ficam em média dois anos na fila de espera. Nosso laboratório produz células-tronco, que podem se tornar qualquer coisa. Nós estamos tentando desenvolver uma terapia para o coração com células-tronco. Esperamos que um dia a gente possa salvar várias vidas com isso.
"O problema é que você tenta se dedicar, mas o sistema que existe para o ensino parece que não está do seu lado"
Serenna Perugia, 18 anos, estudante de Metereologia na USP
Eu venho de uma família simples. Minha mãe não conseguiu fazer faculdade, e meu pai se formou em Administração. Eu estudei a maior parte da minha vida em escola pública, então foi um pouquinho complicado. Meus pais são separados. Ou eu ajudava em casa ou estudava, então foi complicado, mas foi também motivador. Foi muito complicado porque desde sempre eu ajudava minha mãe em casa trabalhando em uma panificadora. Era eu e minha mãe pra colocar dinheiro em uma casa de cinco pessoas. Esse negócio de estudar e trabalhar nunca foi fácil. No terceiro ano, eu trabalhava de manhã, estudava à noite e madrugava estudando. Foi muito tenso. Mas eu precisei mesmo estudar porque tinha que entrar em uma universidade pública. O problema é que você tenta se dedicar, mas sistema que existe para o ensino parece que não está do seu lado. É você por você mesmo. Eu tive o apoio de um amigo que me emprestava os livros do cursinho, acho que só consegui por causa disso. Tem gente que olha pra mim e diz: “Ah, mas você é preta, pegou cota”. Posso até ter pego, mas não é só isso. Tem muita coisa por trás.
Eu acho que é fundamental o apoio do Governo pra gente. O que move o mundo é a ciência, não pode ser só cortar o que aparentemente não está dando lucro. Quando entrei na faculdade e vi o tamanho que era a USP, eu senti um baque. Depois fui vendo os recursos e falei: "Nossa, isso aqui poderia estar melhor". E aí vamos percebendo que estão faltando muitas coisas e que a gente precisa correr atrás. Tem uma sala com computadores, mas não tem processador para tudo aquilo. Gente, o que tá acontecendo? O Brasil tem que acordar pra vida. Desde criança, eu queria trabalhar com tempestade. Mas entrei e vi que tem muita coisa pra estudar. Meteorologia é um campo muito mais amplo do que todo mundo acha, não é a Maju no Jornal Nacional falando da previsão do tempo. Eu quero estudar tempestades e raios, saber como se formam aqueles choques lá em cima.
"Espero que as pessoas saibam que o que a gente faz na universidade é útil"
Vitória Carvalho, 20 anos, estudante de Meteorologia na USP
Estudei em escola particular, mas tive minha primeira crise de ansiedade durante o cursinho, então não foi fácil entrar na universidade. A Meteorologia não é conhecida e foi a minha segunda opção porque na verdade eu queria fazer Astronomia, mas eu me apaixonei pelo curso. Descobri que o ensino básico, tanto particular quanto público, não é suficiente para acompanhar um curso assim na USP. As minhas crises de ansiedade se intensificaram, mas ao mesmo tempo eu estou onde eu quero seguir a minha vida, eu quero ser pesquisadora. E eu quero me formar mesmo com todas as dificuldades. Eu quero ser pesquisadora desde criança. O simples fato de descobrir uma coisa nova ou entender como funciona algo me encanta de um jeito que eu nem sei explicar. Minha mãe fez até a quarta série, e meu pai até a quinta. Meus tios nunca entraram em universidade, quem começou a entrar foram meus primos. Minha mãe é do lar e meu pai é mestre de obras. Eu acho que eles nem entendem o que significa eu estar na USP. Eles sentem muito orgulho, mas não têm muita compreensão do que é isso.
Eu sou de Mogi das Cruzes [a 62 quilômetros de São Paulo] e moro no Butantã porque é longe pra ficar vindo todo dia. Estou em uma universidade pública. Meu pai continua trabalhando, mesmo aposentado, e consegue me manter aqui [em São Paulo] para estudar. Só que ele está sempre com medo de perder o emprego, não terei mais condições de continuar aqui. Ser pesquisador no Brasil não é fácil, imagina cortando o pouco investimento que a gente tem. Espero que as pessoas saibam que o que a gente faz na universidade é útil. Por mais que possa parecer que um estudo de um físico dentro do laboratório é estúpido ou que não serve quando um astrônomo estuda uma estrelinha, tudo isso tem aplicações em algum momento. E todo mundo vai desfrutar desses estudos em algum momento. Se [o físico britânico] Maxwell não tivesse desenvolvido o eletromagnetismo, a gente não teria coisas como celular e Internet.
"As ciências de base não têm retorno imediato, mas sem investir nelas a gente nunca vai desenvolver tecnologia para nada"
Lucas Degi, 22 anos, estudante de Astronomia na USP
Encontrei na Astronomia algo que me fascinava, e fui estudar mesmo sabendo que a carreira seria mais complicada. Desde que eu entrei na universidade, tenho contato com pesquisadores brasileiros e estrangeiros que me incentivaram a correr atrás da iniciação científica, a buscar a fronteira do conhecimento. A ciência é identificar o que a gente conhece e tentar ir além. Desde o começo, toda a estrutura da Universidade incentivou isso aos alunos. Eu sou o primeiro da família a entrar em uma universidade pública, porque meus pais se formaram em faculdades particulares. Neste ano, meu irmão também entrou em uma pública. Lá em casa a gente está muito consciente que a ciência brasileira corre perigo atualmente.
Hoje em dia, eu gosto muito da divulgação científica, que não é estritamente acadêmica, mas consiste em trazer a academia para o público em geral. A gente faz bastante isso na própria universidade. Todas as semanas, a gente recebe alunos de escolas públicas, que assistem palestras sobre astronomia e fazem observação com o telescópio. É um pouco do trabalho que eu faço, em um projeto do IAG [Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP] que existe há mais de uma década. Eu, particularmente, tento mostrar um pouco do meu fascínio pela Astronomia e mostrar que essas pesquisas têm um propósito. As ciências de base não têm um retorno imediato, mas sem investir nelas a gente nunca vai desenvolver tecnologia para nada. A gente tenta sair da torre de marfim, como a gente fala, para mostrar às pessoas o que é ciência. A carreira acadêmica é muito bem remunerada quando você está no topo, mas o caminho para chegar lá não é. Eu recebo uma bolsa de 400 reais por mês.
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