Quando o imperialismo mira as mulheres
Erra quem reduz a lei da mordaça à questão do aborto. E erra ainda mais quem pensa que a lei seja capaz de reduzir ou prevenir o número de abortos no mundo
Mike Pompeo, secretário de estado dos Estados Unidos, é um cristão evangélico. Como muitos na administração de Donald Trump, faz uso do poder político para sobrepor ideologia religiosa às políticas de saúde, uma prática também comum aos países latino-americanos. O movimento mais recente da cruzada missionária de Pompeo foi a expansão da já dura e restritiva “lei da mordaça” (“gag rule”), ironicamente conhecida como “Assistência Internacional para a Proteção da Vida”. O objetivo da política é controlar moralmente as políticas de saúde reprodutiva nos países em desenvolvimento pela condicionalidade da transferência de recursos dos Estados Unidos. Em termos simples, não há dinheiro estadunidense para saúde global se o recurso for, de alguma maneira, usado em políticas de saúde que incluam aborto. Por saúde global, deve-se entender serviços para malária ou HIV/aids, por exemplo. A mais recente expansão da lei da mordaça foi o corte de fundos estadunidenses para a Organização dos Estados Americanos (OEA).
Desde Ronald Reagan, a alternância entre presidentes republicanos e democratas fez com que a lei da mordaça fosse ponto de honra. Uma das primeiras medidas do presidente Trump foi restabelecer a lei da mordaça em 23 de janeiro de 2017: as organizações não governamentais de países pobres reviviam o dilema moral imposto pelo imperialismo estadunidense após os anos de trégua com Barack Obama — ou recebiam os recursos para políticas de saúde fundamentais, ou rejeitavam o controle ideológico e se viam em crise de financiamento. Muitas organizações rejeitaram o imperialismo estadunidense que mira as mulheres pela dependência financeira e bélica do país: não nos parece sem razão que as décadas de lei da mordaça foram também os anos de fazer valer a sentença de Theodore Roosevelt sobre o direito dos Estados Unidos de “exercer o poder de polícia internacional”.
El Salvador é um dos exemplos mais emblemáticos para compreender o impacto do movimento ideológico pela moral religiosa e bélica. Foi no Governo Reagan, o criador da lei da mordaça, que uma significativa oferta militar foi feita ao governo de El Salvador, quem entrou em conflito com a Frente de Liberação Nacional de Esquerda. A guerra civil estabelecida entre os militares e a Frente de Liberação Nacional levou ao Massacre de Mazote, e se estima que 80.000 pessoas foram mortas nos anos de conflito. El Salvador está na lista dos países a que, agora, Trump se recusa a oferecer ajuda humanitária, pois alega que o país não se esforça para impedir a imigração para os Estados Unidos. Se esta é a face óbvia do jogo moral-militar, há outra que conhecemos como testemunhas do vivido: a do imperialismo ideológico que mira as mulheres.
El Salvador foi um dos países em que o vírus Zika assolou mulheres e crianças. Em 2016, uma das principais organizações não-governamentais de proteção à saúde das mulheres no país recebia financiamento do governo estadunidense (USAID) e parte dos recursos era destinado à epidemia do vírus Zika: profissionais de saúde seriam treinados para a prevenção e para incluir Zika nas políticas de saúde reprodutiva. O projeto foi encerrado no início de 2018, sem possibilidade de renovação.
Erra quem reduz a lei da mordaça à questão do aborto. E erra ainda mais quem pensa que a lei seja capaz de reduzir ou prevenir o número de abortos no mundo. Ao contrário: a lei da mordaça provoca maior risco à clandestinidade do aborto. Um estudo, realizado durante o governo de George Bush, mostrou que mulheres vivendo em países sob o efeito da lei da mordaça têm três vezes mais riscos com a clandestinidade do aborto que àquelas de países com menor dependência financeira dos Estados Unidos. A epidemia de Zika mostrou como o impacto é extenso e perverso: de acesso à informação, aos cuidados preventivos, à educação sexual e ao aumento da morte materna. Se há erro em reduzir a lei da mordaça à questão do aborto, não há erro em descrevê-la como uma das muitas faces do imperialismo estadunidense que mira mulheres e meninas como alvos ideológicos.
Debora Diniz é antropóloga brasileira, pesquisadora da University of Brown e da Universidade de Brasília.
Giselle Carino é cientista política argentina, diretora da International Planned Parenthood Federation/ Western Hemisphere
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