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Existe vida no fundo da Antártida

Expedição chega ao lago Mercer, o mais profundo que já foi explorado no continente. É um ambiente semelhante ao dos lagos de Marte e ao dos oceanos das luas de Júpiter e Saturno

Nuño Domínguez
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“Foi como pousar em outro planeta”. É assim que vários membros de uma expedição à Antártida descrevem o momento em que suas câmeras mostraram pela primeira vez o fundo do lago Mercer, o mais profundo que já foi explorado em detalhes neste continente. Sob o gelo da Antártida há mais de 300 lagos – muitos deles conectados – que formam um ambiente mais desconhecido do que a superfície de Marte.

Depois de uma década de preparação, uma expedição liderada pelos EUA conseguiu perfurar 1.068 metros de gelo até alcançar as águas do Mercer. “Acreditamos que este lago e todos os organismos que o habitam estiveram completamente isolados do exterior por pelo menos 100.000 anos”, explica John Priscu, líder científico da expedição Acesso Científico aos Lagos Subglaciais da Antártida (Salsa).

Estes sarcófagos líquidos são a coisa mais parecida que existe em nosso planeta com os lagos e oceanos subglaciais de Marte, Plutão, ou das luas de Júpiter e Saturno, algumas com mais água do que toda a Terra. Eles são os lugares mais prováveis para encontrar vida no Sistema Solar.

Vista externa do poço para o lago Mercer.
Vista externa do poço para o lago Mercer.B. C.

No dia 26 de novembro, uma caravana de escavadeiras, tratores e contêineres instalados em trenós saiu da base antártica norte-americana de McMurdo para fazer uma travessia de 1.046 quilômetros até o interior do continente. Um veículo com radar lidera a comitiva enviando sinais ao subsolo para detectar rachaduras que poderiam sepultar os veículos sob toneladas de gelo. A caravana inclui habitáculos móveis equipados com calefação, beliches, sala de refeições e cozinha onde se pode até assar pão no meio do inóspito deserto de gelo. Também transporta quase 500 toneladas de equipamentos necessários para perfurar o gelo e analisar o lago. Depois de chegar ao lago pela primeira vez em 2017, as escavadoras começaram a construir uma pista de aterrissagem para os aviões que levaram o resto da expedição, em um total de 50 participantes, entre cientistas, perfuradores, montanhistas e militares.

No início dos anos 1960, cientistas soviéticos que exploraram a Antártida detonaram cargas explosivas incrustadas no gelo para medir a propagação da onda expansiva. Assim foi descoberto o lago Vostok, o maior da Antártida, enterrado a 3.400 metros sob o gelo. Desde então Rússia, EUA e outros países lançaram uma corrida para serem os primeiros a alcançar e analisar a água pura de um desses lagos. A Rússia alegou ter conseguido isso em 2012, mas as amostras poderiam estar contaminadas e não ser válidas. O Mercer, descoberto há uma década com imagens de satélite, é “o mais profundo que se alcançou sem contaminar a água e que foi explorado em detalhes”, diz Priscu, já de volta à Estação McMurdo.

Vista aérea do acampamento.
Vista aérea do acampamento.B. C.

O lago Mercer tem uma superfície maior que a cidade de Barcelona e uma profundidade de 15 metros. A missão chegou às suas águas em 27 de dezembro de 2018, depois de derreter cerca de 28 toneladas de gelo com uma máquina de perfuração que cospe água quente esterilizada. Durante os primeiros dias de 2019 foram retirados 60 litros de água e cinco metros de colunas de sedimentos do fundo do lago que, ao chegar a superfície, “borbulhavam com um gás ainda não identificado” explica Priscu. O lago está a meio grau abaixo de zero, mas a pressão em seu interior é cerca de 100 vezes maior do que na superfície, o que permite que a água permaneça líquida e em contato com a lama e as rochas no fundo, um ambiente propício à vida.

As primeiras análises mostram que em cada mililitro de água do lago há cerca de 10.000 micróbios, várias ordens de grandeza menos do que no oceano, mas algo considerável para um lugar onde não chega nenhum raio de luz. “O lago tem baixos níveis de oxigênio em comparação com o ar, o que se deve ao metabolismo desses micróbios”, explica Priscu.

Maquinaria de perfuração do gelo.
Maquinaria de perfuração do gelo.Salsa

Os gases que sem do sedimento podem ser explicados pelo metabolismo desses micróbios, que em vez de extrair energia do sol fazendo fotossíntese a obtêm comendo minerais das rochas. Também é possível que seja metano da decomposição de fauna marinha extinta, pois a equipe encontrou restos de algas e possíveis crustáceos no fundo. A equipe confirmou que a água de Mercer é doce, mas possivelmente, em épocas mais quentes, há milhões de anos, teve contato com o mar.

A equipe explorou o lago com um robô capaz de fazer imagens, sugar água e até recolher pedras com um pequeno braço. “A água do lago é como leite desnatado, muito turva, podíamos ver apenas o que estava a 25 centímetros das câmeras”, explica Bob Zook, engenheiro da Universidade de Nebraska e criador do robô. “Foi como um pouso na Lua”, afirma.

Uma amostra de água extraída do lago Mercer.
Uma amostra de água extraída do lago Mercer.John Priscu

Quando o material extraído chegar aos EUA, a equipe espera analisar o DNA das amostras, que dirá se há animais além de micróbios dentro do lago. A equipe também tentará criar micróbios antárticos em laboratório. “Nossos dados servirão para projetar experimentos que possam estudar os oceanos das luas das regiões mais externas do Sistema Solar e averiguar se houve uma segunda origem da vida”, ressalta Priscu.

Viver semanas em um acampamento perdido a 600 quilómetros do Polo Sul “é o sonho de um cientista, cada dia é uma festa e cada refeição um banquete”, diz este microbiologista da Universidade de Montana. Alguém bebeu água do Mercer? “Ficamos tentados, mas as amostras são valiosas demais”, diz.

A Antártida abriga 90% de todo o gelo da Terra e 70% da água doce. O ritmo do degelo do continente triplicou em três décadas. Se derretesse completamente, o nível do mar subiria 60 metros, o suficiente para cobrir uma extensão de terra superior a toda a União Europeia.

Entender o sistema hidrológico escondido sob o gelo do continente é crucial para prever os efeitos da mudança climática. A expedição norte-americana, que custou 5,2 milhões de dólares (cerca de 19,5 milhões de reais), usou técnicas para reduzir ao mínimo a entrada de água de fora do lago e usou radiação ultravioleta para matar micróbios da superfície presentes no equipamento de perfuração. Este é o segundo lago ao qual a equipe teve acesso depois de ter alcançado em 2013 o Whilans, que fica nas proximidades, onde também encontrou abundante vida microbiana.

A água do Vostok é renovada em escalas temporais de dezenas de milhares de anos, enquanto no Mercer isso acontece na ordem de décadas. Este segundo lago recebe duas correntes de água doce, a maior delas chega do oeste do continente e a outra do leste. Pensa-se que o lago desagua no mar de Ross, no sul do continente, razão pela qual é uma peça fundamental para a compreensão de como a desconhecida e invisível rede de lagos sob o gelo antártico contribui para o equilíbrio da água nos oceanos. Este tipo de expedição “muda nossa concepção do quinto maior continente. Não podemos continuar a vê-lo como um enorme e inofensivo bloco de gelo. Em vez disso, vemos que sob o gelo está a maior área úmida da Terra que desempenha um papel global”, ressalta Priscu.

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