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Coluna
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Bolsonaro e a Bíblia que exige a morte dos adúlteros e homossexuais

Se o Brasil fosse governado pela Bíblia, veríamos não poucas surpresas, como poder condenar à morte não apenas todos os assassinos

Bolsonaro em cerimônia no Rio de Janeiro, no dia 14 de dezembro.
Bolsonaro em cerimônia no Rio de Janeiro, no dia 14 de dezembro. MARCELO SAYÃO (EFE)
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O presidente eleito, Jair Bolsonaro, não gostou da ideia de seu filho, o deputado federal Eduardo, de realizar um plebiscito sobre a pena de morte a alguns crimes. Ficou irritado por, poucos dias antes de sua posse como Presidente da República, se levantar na imprensa um assunto tão espinhoso. No Twitter escreveu, em seu estilo taxativo e lacônico: “Além de se tratar de uma cláusula pétrea da Constituição, não faz parte de meu programa. Assunto encerrado”.

É importante a tomada de decisão do presidente, cujo Governo ainda é uma incógnita na questão das liberdades e dos direitos humanos. O Brasil é uma das maiores democracias mundiais que respeita a laicidade do Estado e defende os valores da vida. Não é, entretanto, um segredo que existem no Congresso forças importantes dentro da chamada “bancada da Bíblia”, que anseiam por um Estado teocrático que declare que o poder não vem do povo, como afirma a Constituição, e sim de Deus.

Significaria arrastar o país a um Estado ao estilo de alguns dos países islâmicos.

Bolsonaro também é chamado o “presidente da Bíblia”, por ser um católico que entrou na Igreja Evangélica em que hoje milita. Costuma levantar em suas mãos os textos da Constituição e das Sagradas Escrituras juntos. Uma das maiores forças eleitorais que o apoiaram à Presidência foi, sem dúvida, a dos evangélicos que votaram em peso nele. E não é estranho que agora queiram cobrar a fatura.

Se o Brasil fosse governado pela Bíblia e não com a Constituição veríamos não poucas surpresas como o poder condenar à morte não só todos os assassinos como também os adúlteros, os homossexuais e os que ousaram aderir a outras religiões, considerados como idólatras.

Os que flertam para que o Brasil mude a Constituição e seja considerado um Estado “confessional” precisam saber que o Deus bíblico é amplamente favorável à pena de morte. “Quem verter sangue de homem, seu sangue será vertido por outro homem” (Gn.9,8). Ou seja, quem mata deve morrer.

Toda a Bíblia também está carregada de pedidos de penas de morte aos pecados contra o sexo e a infidelidade conjugal: “Se um homem comete adultério contra a mulher do próximo serão castigados com a morte o adúltero e a adúltera” (Lev.20,10). Contra a homossexualidade: “Se um varão se deita com outro varão, como se faz com uma mulher, ambos cometeram uma abominação. Devem morrer. Seu sangue sobre eles” (Lev20,13). Contra o bestialismo: “Quem se deitar com um animal, morrerá” (Ex22,10).

E não só o Antigo, o Novo Testamento também mantém a pena de morte. Conhecendo os fariseus a magnanimidade de Jesus com os pecadores, quiseram tentá-lo para ver se ele se opunha à pena de morte, que era a lei de Deus. Segundo o evangelho de João, mandaram uma mulher “flagrada em adultério”, arrastada por alguns homens. Lembraram a Jesus que a lei manda matá-la por apedrejamento. “Tu que dizes?”, lhe perguntam. Jesus não responde, mas sabe que tal lei, sancionada no Livro do Levítico, manda matar também o adúltero. De modo que diz aos homens que o que estivesse “limpo de pecados” começasse a apedrejá-la. Todos foram embora. Jesus a perdoou. Onde estava o adúltero?

Durou pouco a postura de Jesus contra a pena de morte. Seus seguidores, de Paulo até nossos dias, defenderam que os governantes poderiam continuar impondo a pena capital. Assim o defenderam de Santo Agostinho a São Tomás. E todos os Papas até hoje. Há poucos dias o papa Francisco, quebrando uma tradição milenar da Igreja, corrigiu o catecismo católico abolindo a pena de morte “sob qualquer circunstância”. Até Francisco, a Igreja não só permitia aos Governos impor a pena de morte como ela mesma a exerceu com a Inquisição quando mandou queimar vivos milhares de hereges. E mais, desde 1929 o pequeno Estado do Vaticano manteve a pena de morte em sua legislação interna. Foi abolida por Paulo VI somente em 1969 após a abertura do Concílio Vaticano II.

A afirmação de que ele será fiel à Constituição laica brasileira que proíbe a pena capital da mesma forma que os Governos das democracias ocidentais, é uma garantia contra os temores que seu mandato levanta. Seria preciso deduzir de suas palavras que não pensa em estimular as tentações teocráticas das Igrejas que o levaram ao poder. Se é sincero, deve começar, entretanto, por continuar controlando as pretensões iconoclastas de seus filhos. Deve fazê-los entender que a partir de primeiro de janeiro o único presidente do país é ele.

Somente assim o Brasil poderá continuar sendo um Estado laico, moderno e democrático. O desafio não é pequeno. Esse país, coração econômico do continente latino-americano, é uma das maiores democracias mundiais. Abandoná-las para se juntar aos que pretendem desenterrar a velha lei do Talião, do olho por olho e dente por dente, significaria um passo atrás nas relações internacionais que afetaria a própria economia. Uma economia hoje em crise e que condena, isso sim, à pobreza e até à miséria milhões de brasileiros, mais preocupados com sua própria sobrevivência do que com a pena capital. Eles são os filhos do esquecimento e da indiferença. Há pena pior? Já são mortos vivos.

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