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Os caminhos abertos pelo bebê brasileiro nascido do útero transplantado de uma morta

Revista 'The Lancet' publicou o caso do primeiro bebê nascido saudável após um procedimento do tipo. O feito, concluído em SP no ano passado, retrata avanços na reprodução assistida e gera dilemas éticos

Nuño Domínguez
A menina nascida em São Paulo, em 2017, após o transplante de útero de uma mulher morta
A menina nascida em São Paulo, em 2017, após o transplante de útero de uma mulher mortaHospital das Clinicas
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Uma brasileira de 32 anos foi a primeira mulher do mundo a dar à luz, em 2017, um bebê saudável após receber um útero transplantado de um cadáver no Hospital das Clínicas em São Paulo. A receptora tinha os ovários intactos e produzia óvulos, mas nasceu sem útero por causa de uma doença congênita que afeta uma em cada 4.500 mulheres. O caso, publicado nesta terça-feira, 4, na revista médica The Lancet, abre caminhos para mulheres inférteis e, inclusive, para pessoas que mudaram de sexo, além de suscitar discussões sobre dilemas éticos.

Durante uma operação de mais de 10 horas, os médicos transplantaram, em 2016, o útero de uma mulher de 45 anos que havia falecido por um derrame cerebral. O procedimento exige uma complicada cirurgia e altas doses de fármacos imunossupressores para evitar a rejeição. Sete meses depois do enxerto, os médicos implantaram na paciente um de seus óvulos previamente fecundados. Após uma gestação normal, ela teve uma menina saudável. Depois do nascimento por cesariana, os médicos retiraram o útero transplantado para que a mãe não tivesse que seguir com a intensa medicação.

Esses transplantes são complexos do ponto de vista técnico e, em geral, pouco exitosos. No total, foram tentados 39 transplantes entre pessoas vivas, dos quais só 11 conseguiram bebês saudáveis. Na maioria dos casos, as doadoras são mães, irmãs ou amigas íntimas das receptoras, o que limita muito a disponibilidade de órgãos. Até o momento, haviam sido tentados 10 transplantes com doadoras mortas, todos sem sucesso. A equipe médica do Hospital das Clínicas, vinculado à Universidade de São Paulo (USP), considera que o resultado positivo facilitará “a adoção generalizada” desse tipo de transplantes. Os responsáveis pelo trabalho dizem que a intervenção poderia não só ajudar mulheres inférteis por doenças congênitas, mas também outras que tiveram o órgão extirpado após infecções ou tratamentos oncológicos. Para todas essas pessoas, as únicas opções disponíveis eram a adoção e o acesso a barrigas de aluguel. Até que, em 2013, a equipe do ginecologista sueco Mats Brännström anunciou o nascimento do primeiro bebê por transplante de útero entre vivas. Mas a equipe advertiu que o uso de órgãos de cadáveres é uma técnica “muito recente e considerada experimental em muitos países”.

A Organização Nacional de Transplantes desaconselhou aplicar a técnica na Espanha porque traz mais riscos que benefícios

“Trata-se de uma técnica muito questionável do ponto de vista ético”, explica Beatriz Domínguez-Gil, diretora da Organização Nacional de Transplantes (ONT) da Espanha. Em 2016, o comitê ético da organização analisou esse tipo de procedimento e o rechaçou porque traz mais riscos para a mãe e o embrião do que benefícios, explica a diretora da ONT. “Os riscos que a mãe assume e o impacto no feto não compensam o objetivo de conceber um bebê. Além disso, existem alternativas viáveis, como a adoção”, diz ela. “No caso de mulheres que nascem sem útero, ao se fazer essa intervenção prevalece o direito da mulher à maternidade, mas, em nossa opinião, é mais importante respeitar o princípio da não maleficência [não causar dano] e também o de fazer um uso adequado dos recursos públicos.” Os transplantes realizados pela equipe sueca tiveram um custo de 65.000 euros (286.000 reais), embora o custo de cada intervenção varie muito dependendo do país onde é realizado. Na Espanha, esse tipo de cirurgia requer a aprovação do hospital, da Comunidade Autônoma e da ONT.

“Provavelmente essa técnica seja estendida, podendo inclusive se tornar rotineira”, afirma César Díaz, ginecologista do Instituto Valenciano de Infertilidade, uma entidade privada. Díaz colaborou com a equipe sueca que conseguiu o primeiro transplante. O médico, que trabalha agora em Londres, diz que tem permissão para realizar dois transplantes entre doadoras e receptoras vivas num estudo coordenado pela Universidade de Oxford. Uma das duas receptoras é uma mulher que precisou retirar o útero após um parto – problema que afeta cerca de quatro em cada 100.000 mulheres. Outras complicações são muito mais comuns. Por exemplo, uma em cada 100 mulheres sofre retirada do útero por tumores benignos na parede do órgão.

“Provavelmente essa técnica seja estendida, podendo inclusive se tornar rotineira”

Díaz acredita que esses procedimentos estão totalmente de acordo com a ética médica e que “o número de pacientes que poderiam se beneficiar de um transplante é grande”. “Em todos os casos, é preciso analisar os riscos e benefícios, mas devemos ter em conta que a pessoa que corre o risco é a mesma que tem o maior benefício da intervenção. A infertilidade é uma das doenças mais incapacitantes, e nisso também deveríamos buscar um princípio de equidade. As pessoas inférteis também pagam impostos. Negar a elas o transplante seria como não dar o tratamento paliativo a um doente que você sabe que vai morrer de câncer”, completa.

Brännström explicou em 2015 à rede ABC que recebia pedidos “de pessoas que mudaram de sexo e querem ser mães”. É uma intervenção tecnicamente viável, segundo os especialistas, e que traz dilemas éticos ainda mais complexos.

Só para mulheres com boa condição física

Em 2013, uma mulher de 61 anos decidiu retirar o útero para implantá-lo numa de suas melhores amigas, uma mulher sueca de 35 anos que nasceu sem o órgão por causa de uma doença congênita. Embora a doadora tivesse atingido a menopausa sete anos antes, seu útero permitiu o nascimento do primeiro bebê por essa técnica. Desde então, o programa de transplantes sueco também se aplica a mulheres que perderam o útero após um câncer, conseguindo oito nascimentos. Poder usar órgãos de pessoas mortas aumenta a disponibilidade de órgãos em países com sistemas nacionais de transplantes e elimina as complicações que as doadoras vivas podem sofrer, argumentam os médicos brasileiros. Esse tipo de transplante exige que as receptoras estejam saudáveis e com bom estado físico para suportar as possíveis complicações, como hemorragias moderadas, e aguentar as altas doses de remédios imunossupressores.

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