Por que 29% dos LGBTs votam em Bolsonaro?
É essencial entender que há discriminação e acolhimento simultaneamente ao público entre bolsonaristas
Durante seus quase trinta anos de mandato, Jair Bolsonaro se notabilizou na Câmara dos Deputados e na imprensa por declarações como a defesa da castração química e a preferência por um filho morto a um filho gay. Há algumas semanas, um de seus filhos, Carlos Bolsonaro, republicou em seu perfil no Instagram uma imagem que simulava uma cena de tortura de um jovem gay. Em lives no Facebook, o capitão reformado subiu o tom em seus posicionamentos recentes, defendendo que desapareçam as “minorias” que não se adequem às “maiorias”. Na reta final do segundo turno, avolumam-se em diversas cidades relatos de agressão verbal e física a LGBT por motivação eleitoral. Ameaças como “a sua hora está chegando” e “vamos limpar o Brasil começando por vocês” têm alcançado jovens e casais LGBT na rua, na fila do mercado, na orla da praia e na repartição do trabalho.
Por que, então, haveria pessoas LGBT dispostas a votar em Bolsonaro?
A pergunta parece apresentar uma contradição, mas em termos. A associação aparentemente direta entre pessoas LGBT, valores progressistas e ideologias de esquerda conta uma parte expressiva da trajetória das lutas LGBT no Brasil, mas não a história toda.
A nível da militância, é certo dizer que o ativismo de gays, lésbicas e travestis, desde ao menos os anos 1980, manteve relação ora crítica, ora de afinidade com os partidos de esquerda emergentes. A criação de setoriais de gays e lésbicas no PT e na Convergência Socialista, gérmen do que se tornaria o PSTU, ocorreu no mesmo contexto em que emergiram ONGs, coletivos e associações formadas por militantes que não raro mantinham inserção partidária no campo da esquerda. Este contexto marcado pela luta de direitos, entretanto, ofereceu as condições para o surgimento de coletivos como o Diversidade Tucana, em 2006. Embora não fossem maioria nos espaços do ativismo, militantes LGBT do PSDB atuavam nos termos de uma democracia, em espaços de participação sócio-estatal ou em pastas LGBT de gestões estaduais tucanas.
Já em relação às pessoas LGBT, não ativistas, deveria causar ainda menos espanto a existência de “gays de direita” ou “lésbicas de direita”. Desde antes da homossexualidade passar a ser entendida no Brasil como uma categoria política de reconhecimento social, as práticas homoeróticas já não eram exclusivas a alcovas liberais ou progressistas. Mesmo com a politização das identidades LGBT, o pressuposto democrático garantia - ainda que não livre de julgamento - a afirmação de valores cristãos, militaristas, punitivistas, classistas ou até mesmo monárquicos por parte de pessoas LGBT. O desenvolvimento do “pink money” como segmento econômico ensejou aos poucos a possibilidade de uma experiência homossexual realizada por meio do consumo. A sigla GLS, inventada pelo mercado, e não pela militância, expressou desde seu surgimento os anseios de um público restrito que não precisava ser militante para ser LGBT, porque poderia fazê-lo consumindo.
Isto posto, o que se observa em eleitores LGBT de Jair Bolsonaro em nada se assemelha a setoriais partidárias, e também não se restringe a uma parcela LGBT endinheirada. Embora variem os argumentos e os perfis de LGBT que justificam a escolha pelo candidato de extrema-direita, há uma recorrência insistente na adoção de valores familiares ou cristãos, punitivistas ou anti-sistêmicos, apesar dos riscos.
Para entender o que motiva pessoas LGBT a votarem em Bolsonaro, não basta indagar o porquê de existirem pessoas LGBT de direita, mas sim os motivos pelos quais pessoas LGBT se posicionam contrariamente aos direitos LGBT, ao movimento responsável por disputá-los e aos valores por ele defendidos.
No que diz respeito ao tratamento dos temas envolvendo gênero e sexualidade na campanha de Bolsonaro, é curioso notar que as idas e vindas do candidato, muitas vezes explicitamente preconceituoso e violento, mas às vezes condescendente e conciliador, produz uma neblina de significados mais estratégica do que necessariamente inconsistente. Este mecanismo retórico que investe em declarações e demonstrações excessivamente apelativas seguidas de recuos pontuais cria um solo fértil para a convivência, nem sempre pacífica, de eleitores decididos em exterminar LGBT e de LGBT decididos em votar em Bolsonaro.
O candidato não apenas sabe que parte de seu eleitorado é formada por LGBT de direita, como demonstra levantamento do Datafolha de 25 de outubro, a primeira em que o instituto de pesquisa inclui a variável de orientação sexual. A pesquisa aponta serem 29% os não heterossexuais que declaram voto no candidato. Mas, desde ao menos 2016, Bolsonaro tem produzido conteúdos audiovisuais em parceria com jovens gays e outras minorias. Em um dos vídeos, o ex-capitão explica o que entende por homofobia – de modo que, pela sua própria definição, não seria ele um homofóbico.
Desse modo, fora dos círculos de esquerda e do movimento LGBT, a lógica que justifica a existência de pessoas LGBT que votam em Bolsonaro em nada tem a ver com justificar uma suposta incoerência. Mas, precisamente, consiste em constituir as possibilidades de existência pública de LGBT que defendem, em todo ou em parte, os valores defendidos pelo candidato, apesar de suas declarações preconceituosas.
Em grupos no Facebook e em listas do Whatsapp, os vídeos e publicações de homens trans, travestis, gays, lésbicas, bissexuais, drag queens viralizam não necessariamente em função da quantidade, mas pela capacidade útil destas declarações em amenizar ou gerar controvérsia nas declarações polêmicas do candidato e de seus eleitores mais radicalizados.
Os apoios de LGBT a Bolsonaro, em certa medida, atendem aos anseios daqueles eleitores que votam nele porque não acreditam na possibilidade de Bolsonaro cumprir tudo o que promete. Afinal, “se tem LGBT que apoia o cara, então não pode ser verdade tudo o que se diz sobre ele”, me relatou uma interlocutora de pesquisa que é mãe de uma jovem lésbica e eleitora de Bolsonaro. “Amo minha filha e ela sabe o que é melhor para si, por isso ela também vota 17”. Não é à toa, portanto, que as declarações de apoio de LGBT a Bolsonaro sejam frequentemente seguidas de elogios de eleitores heterossexuais menos radicais, que são tolerantes o suficiente para enaltecerem a coragem e a bravura daqueles que “pensam no país e não apenas em si próprios”.
Nas bolhas bolsonaristas, não se trata de existir ou não contexto para ser LGBT. Mais: é desejável que haja LGBT que se posicionem favoravelmente, que desmintam ativamente, e não porque foram forçados ou convencidos a tal, as fake news a respeito do candidato. Quando suas declarações mais estridentes contra LGBT não são tomadas como notícias falsas, são desacreditadas quanto à sua real intenção. Em entrevista à Piauí, Rodrigo é assertivo: “Converso muito com um colega de trabalho, que também é gay e casado. Ele me mostrou como as coisas que o Bolsonaro diz são mal interpretadas. É muito fácil viralizar um vídeo com conteúdo errado.”
É essencial entender que há discriminação e acolhimento simultaneamente nestes espaços. Essa dinâmica de produção de sentido pouco rígida, capaz de ser reinventada, remodelada, adaptada, é força motriz de apoios LGBT a Bolsonaro. A ideia de que pessoas LGBT de direita se engajem politicamente nos termos de um ativismo anti-movimento LGBT e anti-direitos LGBT ainda é inconcebível para muitos militantes de esquerda, mas deve ser tratada como uma possibilidade crescente. Aqueles que explicam este processo insistindo no argumento da incoerência ou da ignorância deixam escapar os variados sentidos atribuídos à ideia de democracia ao longo deste processo eleitoral.
A partir do regime de coerências que legitima posicionamentos aparentemente contraditórios dentro das bolhas bolsonaristas, abundam os eleitores LGBT de Bolsonaro que não se entendem no papel de minoria, que não concordam com o papel de vítima a eles atribuído, que repudiam a Parada LGBT, que contestam os valores defendidos pela militância, que acreditam que a sexualidade é uma questão a ser tratada a quatro paredes, que discordam de demonstrações públicas de afeto homossexual. São contra a corrupção, antissistêmicos e, em alguma medida, são anti-direito LGBT porque tais direitos são interpretados como uma ameaça a valores que lhes são caros, como a família tradicional. Isso os impele a se posicionarem como se estivessem "a favor do Brasil", dizendo colocar seus interesses pessoais em segundo plano.
O lugar que aqueles que se posicionam criam para si, pelo contrário, busca evocar uma ideia de "democracia para todos", e não apenas para si ou para os seus. Apesar de LGBT, priorizam o Brasil. Esse é um valor que pode ser profundamente contestado, mas é incontestável na sua capacidade de emular um sentido de democracia. “Me preocupo muito com meus direitos. Mas quero ter direitos porque sou humano, não porque sou LGBT. Isso é rotular”, diria Rodrigo.
Ao fim, descobrimos o que há muito já sabíamos: em uma democracia, a identidade de gênero e a orientação sexual não vinculam uma orientação ideológica, e tampouco deveriam. Resta agora saber o que acontece na iminência da ausência de uma.
Lucas Bulgarelli pesquisa a articulação de gênero e sexualidade entre grupos de direita em seu doutorado em Antropologia Social na USP.
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