“É um alívio poder dizer que meu pai não é mais um desaparecido político”
Para Fabiano Casemiro, filho de Dimas, operário morto pela ditadura militar, enterrar o pai, considerado desaparecido por 47 anos, é encerrar um ciclo da história da família
Fabiano tinha quatro anos quando seu pai, Dimas Antônio Casemiro, o “Rei”, foi assassinado pelo regime militar. Mas o corpo, até pouco tempo, não tinha sido encontrado. Dimas era mais um dos desaparecidos da ditadura. Agora, 47 anos depois, o publicitário pôde finalmente enterrar os restos mortais de seu pai. Para ele, a sensação não é de felicidade, mas de alívio por encerrar essa parte da história de sua família. “O maior alívio é poder dizer que meu pai não é mais um desaparecido político. Meu maior desejo é de que todas as pessoas que participaram disso comigo e que também esperam por seus entes, possam encontrá-los e enterrá-los”, declara Fabiano, em entrevista à Ponte.
Dimas era militante do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), organizado pela classe trabalhadora, e foi morto em uma emboscada próximo a sua casa. Mais tarde, o relatório da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), apontou que Dimas foi preso e torturado entre os dias 17 e 19 de abril de 1971 e morto em seguida. Sua ossada foi despojada em uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, localizado em Perus, extremo norte de São Paulo.
Dimas Antônio Casemiro é o primeiro nome a ser identificado pela equipe do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF), criado pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), em 2014. “Tinha muita gente duvidando do resultado disso, inclusive eu. Quando visitei o CAAF, há um ou dois anos, eu cheguei em casa e disse ‘olha, não vai dar certo’, porque no Brasil é tudo muito complicado, tinha muito movimento político envolvido, havia a dúvida se teriam verba ou não”, diz Fabiano. O enterro de Dimas foi realizado no dia 30 de agosto deste ano.
Verdade sufocada
Filho único, Fabiano Casemiro só soube da causa da morte de seu pai aos 20 anos, pouco tempo antes de sua mãe, Maria Helena Zanini, falecer de câncer, sem saber do paradeiro de Dimas. “Minha mãe nunca havia me contado nada. Para mim, ele tinha morrido num acidente de carro. Eu sempre tentei entender sua decisão de não contar, ela tinha medo que eu me revoltasse e entrasse em algum movimento. Isso tudo sempre a machucou muito. Quando ela começou a falar sobre esse assunto, ela faleceu. Eu não tive tempo de conseguir muitas informações com ela e na minha família ninguém nunca falava sobre isso”, lamenta.
Fabiano conta que, embora tenha sabido da verdade dos fatos e entendido tudo que tinha acontecido anos mais tarde, se recorda de que a família vivia sendo vigiada. “Vinha de carro um pessoal da repressão para ver se a minha família não estava voltando para atividades subversivas ou mantendo contato com alguém. Assim que meu pai morreu, minha mãe foi presa simplesmente por ser casada com ele. Eles entraram em casa e pegaram tudo o que tinha do meu pai. Na delegacia, no DOI-Codi, minha mãe relatou que ela via os guardas usando roupas e relógios do meu pai. Era uma forma de afetar o psicológico dela e de quem era próximo”.
Pai de dois filhos, de 18 e 12 anos, ele sempre tentou levar sua vida com naturalidade. “Para mim foi uma surpresa, mas eu nunca encarei isso com dificuldade. Hoje, tento passar para meus filhos toda a história. Participando de algumas reuniões, eu vejo muita gente que diz que não poderá mais participar pois não tem mais saúde, que está cansada e isso me preocupa muito. Quando meu pai foi assassinado, eu tinha 4 anos, sou um dos parentes mais novos que participam desses encontros, mas tem pais, tios e irmãos ali. Vai chegar uma hora que os mais próximos não estarão mais vivos e se não passarmos essas informações para as novas gerações, essas histórias vão se perder”, alerta.
Seu tio, Dênis Casemiro, também foi morto e despojado na vala clandestina de Perus, em 1971. No entanto, suas ossadas foram identificadas logo após a abertura, em 1991. Para ele, pai e tio eram idealistas e decidiram ir para a luta. “Foi tudo muito próximo, eu era muito novo. Meu pai e meu tio entraram nesse movimento para tentar mudar um pouco a situação do país. Eu vejo desse jeito. Sempre ouvi falar que eles eram boas pessoas e isso me conforta muito. Eu quero deixar um legado bom para os meus filhos, assim como meu pai deixou para mim”, conta.
Durante toda a sua vida, buscou em vão por fotos e registros de seu pai. Hoje, com menos de cinco fotos em seu arquivo pessoal, Fabiano respira aliviado por saber onde seu pai se encontra.
Ainda morando em Votuporanga, interior de São Paulo, cidade natal da família, Fabiano prefere se manter fora de evidência. Diferente de outros familiares de desaparecidos e mortos políticos, ele sempre foi menos ativo. “Eu sempre falo que o menos ativo foi o mais privilegiado, nesse caso. Eu vejo a luta de muitas pessoas ali e a gente sabe como dói neles. Como eu não conheci meu pai, o sentimento é diferente das pessoas que conviveram com seus entes e que têm histórias com eles. Eu não, eu tenho apenas a memória construída por relatos”, afirma.
“Tem muita gente que fala sobre ditadura sem conhecer o que houve, mas eu senti na pele o que foi. As pessoas precisam saber até onde foram as marcas profundas deixadas nas pessoas que sofreram nesse período”, critica.
Fim de uma espera
Em 30 de agosto deste ano, data determinada pela ONU como Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimento Forçado, os restos mortais de Dimas Casemiro foram entregues à família e enterrados em Votuporanga, no interior de São Paulo. A cerimônia contou com a presença de representantes da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e do Grupo de Trabalho Perus (CAAF-Unifesp). “As ossadas demoraram para vir, pois tinha muita burocracia a ser resolvida e eles queriam emitir um novo atestado de óbito. Com isso, decidimos esperar até essa data”, conta Fabiano.
No mesmo dia, um evento na capital paulista homenageou Dimas e tratou dos desaparecimento que continuam acontecendo, ainda que estejamos vivendo em um regime democrático. Na ocasião, a promotora de Justiça Eliana Vendramini declarou que há, atualmente, 28 mil desaparecidos em todo o estado de São Paulo. Além disso, destacou o trabalho que tem sido feito pelo GTP (Grupo de Trabalho de Perus) dedicado à identificação dos restos mortais encontrados em 1990 na vala clandestina do Cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, Grande São Paulo. Uma das ossadas identificadas foi justamente a de Dimas. “Pelo menos 3 mil pessoas enterradas como indigente foram identificadas. O Estado desapareceu com elas. Isso é desaparecimento forçado por omissão. A quem interessa não avisar a família?”, provocou Eliana.
Para Fabiano, enterrar as ossadas do pai, ainda que quase 50 anos depois, foi como fechar um ciclo. “Não se trata de receber ‘meus pêsames’. Se trata de encerrar essa parte da história da minha família”, conclui.
Reportagem originalmente publicada no site Ponte Jornalismo.
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