_
_
_
_

João Moreira Salles: como fazer cinema com quase nada, uma homenagem a Eduardo Coutinho

Realizador de ‘No Intenso Agora’, irmão de Walter Salles e diretor da revista ‘Piauí’, fala sobre as influências de seu mentor, um dos melhores documentaristas brasileiros

Moreira Salles, terceiro a partir da esquerda, no festival Documenta Madrid.
Moreira Salles, terceiro a partir da esquerda, no festival Documenta Madrid.DOCUMENTA MADRID

O encontro com o personagem, a responsabilidade de dar a palavra ao povo, a supressão de elementos cinematográficos em busca da essência e a arte de não terminar, de não encerrar um filme para que o fim fique nas mãos do espectador. Essas são algumas das características principais do trabalho do documentarista brasileiro Eduardo Coutinho (São Paulo, 1993-2014), ressaltou na quarta-feira um de seus discípulos, o diretor João Moreira Salles (Rio de Janeiro, 1962), irmão do muito mais conhecido Walter Salles, que lotou o anfiteatro Gabriela Mistral, da Casa da América, em Madri. O evento: o festival Documenta Madrid. O formato: uma master class na qual Moreira Salles foi mostrando as características da obra do homenageado, considerado um dos melhores documentaristas brasileiros. Sua conferência pode ser resumida nos seguintes pontos:

Mais informações
Lições de um grande conversador
João Moreira Salles: “O apego ao movimento de 1968 é desmesurado e conservador”
Em Paris, João Moreira Salles disseca o corpo vivo de maio de 68

- Não ter medo de que a originalidade esteja presente na história e filmar sem concessões uma sequência de três minutos enquadrando apenas um protagonista que repete que passou fome, muita fome, e só tinha algumas batatas para comer, mostrando-as para a câmera. Coutinho faz isso sem cortes, sem montagem, sem planos especiais. “Nada expressava melhor a devastação. Nada podia contar melhor o absurdo da fome que a oralidade daquele homem, três longos minutos nos quais enfatiza que faltava de tudo para ele”, assinalou Moreira Salles. Um cinema em busca do indivíduo, sem abstrações.

- Supressão, o que de alguma forma explicava o título da conferência: “Como fazer cinema com quase nada”. Adeus à narração, às trilhas sonoras, ao roteiro, aos movimentos de câmera, às paisagens... O objetivo: buscar a dramática mínima. “Ele diluía o que se via para ir à essência”, resumiu seu discípulo, lembrando que para Coutinho a única paisagem era o corpo humano.

- O cinema como teatro. Em sua obra, o documentarista deixava que se vissem as câmeras e toda a parafernália que envolve uma filmagem: equipe, luzes, fios... O autor procurava tirar o mistério do cinema e ser claro com o espectador, deixar evidente a intervenção que aquilo significava. Verdade e teatro para procurar a verdade.

- Responsabilidade de contar a verdade buscando a presença do presente. E aqui Moreira Salles explicou essa máxima citando Shoah, o documentário de 1985 sobre o Holocausto, “no qual os esquecimentos da Europa são uma presença do presente”.

- Cronologia na hora da montagem. “Ninguém é a consecução de ninguém”, lembrou Moreira Salles em relação a seu mestre. Com isso, quis dizer que se Coutinho filmava uma dezena de personagens para um documentário, não alterava a ordem na montagem. Não valeria, segundo o cineasta, a “lógica do Deus” (do criador) para contar a história. Coutinho só quebrou essa lógica em uma ocasião, destacou-se na sala. Fez isso para não encerrar um de seus trabalhos com uma verdade absoluta, e sim com a incerteza, deixando o final aberto. “Os filmes não terminam com pontos de exclamação, devem fazer isso com reticências”, apontou o cineasta e professor. Sobre esse ponto, Moreira Salles recordou que Jordana Berg, montadora dos filmes de Coutinho, costumava dizer que o mestre em fazer cinema sem recursos não terminava suas obras, ele as abandonava.

- Encontros ou conversas, mas jamais entrevistas para conseguir um bom trabalho. Uma copresença do personagem e do documentarista, na qual ambos contribuem para chegar a uma espécie de erotismo. “Tudo tem de ser um mistério na medida justa para que as coisas aconteçam. O corpo deve falar e o falar está vinculado ao corpo”, apontou o professor em referência a seu mestre. E tudo de uma perspectiva na qual não se julga nem se faz jornalismo. “Jamais entrevistarei um torturador, porque eu o acabaria entendendo”, dizia, como lembrou Moreira Salles, o homem que amava os documentários.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_