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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

O Brasil precisa de um plano para os venezuelanos que chegam

Estratégia precisa estar imune de influências políticas, sob risco de expor refugiados à novas privações

Venezuelanos embarcam com destino a São Paulo
Venezuelanos embarcam com destino a São PauloAntônio Cruz (Agência Brasil)

O fluxo migratório recente de venezuelanos ao Brasil em busca de refugio ou de oportunidades de sobrevivência vem gerando tensão na recepção e acolhimento em cidades do estado fronteiriço de Roraima e leva seus gestores a cobrar medidas do Governo Federal, entre as quais a redistribuição geográfica desses migrantes para outras partes do país.

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A chamada estratégia de interiorização teve início no último dia 5 de abril e já traz elementos a serem problematizados a fim de contribuir para sua melhor implementação. Por um lado, pouco se sabe sobre os objetivos, alcance e procedimentos desta iniciativa que deslocou algumas dezenas de pessoas para as cidades de São Paulo e Cuiabá. E do outro, é de conhecimento público que o Brasil vem sendo provocado nos anos recentes a responder fluxos migratórios significativos e que já vem acumulando experiência suficiente, sendo inclusive referência mundial em acolhida humanitária, para promover tal estratégia em condições dignas, seguras e adequadas à uma interação promissora com as novas comunidades de acolhida.

Em alinhamento com os princípios de livre movimento em território nacional de pessoas migrantes e refugiadas preconizadas pelo Brasil em sua legislação, exige-se que a adesão voluntária seja manifestada pelos migrantes e refugiados e que esteja embasada em uma tomada de decisão informada. Ou seja, que eles tenham conhecimento sobre o que lhes espera nas novas cidades de destino em termos de estrutura e assistência, em especial em relação a temas essenciais como trabalho e emprego, moradia, serviços de saúde, documentação e reunião familiar, entre outros. Em um cenário onde relatos de violações de direitos trabalhistas já se acumulam em todo território nacional contra a população imigrante, merece atenção especial a realização de ações de prevenção ao trabalho escravo e ao tráfico de pessoas em uma ação de mobilidade assistida pelo Governo Federal em parceria com organismos internacionais especializados.

Outra premissa basilar que deve ser atendida pela ação de interiorização é a gestão eficiente das expectativas, uma vez que envolve questões de ordem prática e bastante objetivas. O amplo conhecimento das disposições gerais, procedimentos operativos, papéis e atribuições de todos os envolvidos, eventuais benefícios assistenciais e políticas públicas locais, entre outros, possibilita a implementação mais eficiente da própria iniciativa e reduz a chance de conflitos desnecessários. Uma estratégia de formação e de informação qualificada deve ser estabelecida para esclarecer e sensibilizar preventiva e continuadamente a opinião pública sobre a acolhida destas pessoas nas novas cidades e estimular que o clima de tolerância e solidariedade prevaleça, a fim de evitar tensões sociais, discriminação e xenofobia, ações essas que já foram observadas, infelizmente, em Roraima e que podem vir a se tornarem mais frequentes e a acirrarem-se em um ano de disputa eleitoral no Brasil.

Outro ponto essencial para a o sucesso da medida é a promoção de iniciativas diversas e complementares que apoiem migrantes e refugiados na busca de oportunidades de geração de renda, visto tal medida ser fundamental no alcance da autonomia financeira dessas pessoas e que idealmente deve estar alinhada às necessidades do mercado de trabalho brasileiro. O diálogo social tripartite travado entre o poder executivo federal (Ministério do Trabalho e Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços) e local (secretarias municipais de trabalho e renda) e os representantes de trabalhadores e empregadores, pode gerar entendimentos que resultem em ofertas diretas de emprego, iniciativas de responsabilidade social corporativa e até mesmo na formulação de políticas públicas para dar materialidade à nova lei de migração no que tange ao reconhecimento acadêmico e ao exercício profissional, possibilitando o empenho deste capital humano em beneficio do país. Segundo o Ministério Publico do Trabalho a estratégia de interiorização corre o risco de revelar-se insuficiente a médio prazo já que “somente a obtenção de renda própria permitirá a permanência no país em condições dignas”.

Concomitantemente aos temas expostos anteriormente, é urgente que se constitua um mecanismo de coordenação institucional da estratégia de interiorização que contemple a participação da sociedade civil ampliada, incluindo coletivos de migrantes, e dos gestores públicos locais sob o risco de reduzir ou até mesmo frustrar as possibilidades de sucesso desta ação devido à multidimensionalidade e dinamicidade dos elementos envolvidos em qualquer fenômeno migratório. Lembremos que no caso do reassentamento de refugiados palestinos em 2007, a desarticulação entre as instituições à frente do programa retardou a construção de respostas eficazes aos inúmeros desafios de integração local vivenciados pelas famílias. No caso do fluxo haitiano, a grave crise institucional entre os entes federativos deflagrada pelo envio não informado de ônibus com migrantes haitianos para a cidade de São Paulo é mais um exemplo a não ser seguido.

Vislumbra-se na interiorização um elemento fundamental para diminuir a pressão sobre as cidades fronteiriças na região norte, desde que os locais de envio desses migrantes sejam escolhidos com base em critérios objetivos facilitadores da acolhida e autonomia destas pessoas e tendo como pressuposto o aproveitamento dos potenciais que esse movimento pode oferecer às novas comunidades de acolhida. Logo, tal estratégia precisa estar imune de influências político-partidárias e eleitoreiras sob risco de frustrar os objetivos da interiorização e de, principalmente, expor os migrantes e refugiados à novas privações e violências passíveis de serem sofridas em território brasileiro.

Não obstante, em virtude da complexidade do tema, deve-se ter em mente que a interiorização é uma das medidas, entre tantas outras, necessárias para responder ao fluxo crescente de venezuelanao ao Brasil.

Por fim, a dita interiorização – caso seja inspirada nas lições trazidas pelas experiências prévias de acolhida humanitária e alinhada aos princípios da proteção internacional e ao potencial de desenvolvimento econômico e social das cidades receptoras – dará ao Brasil a grande oportunidade de materializar mais uma vez, agora sob a égide da nova lei de migração, o espírito de solidariedade pelo qual vem sendo reconhecido internacionalmente.

Cyntia Sampaio é mestre em Migração e Relações Interculturais pela Carl von Ossietzky University of Oldenburg e assistente social. João Carlos Jarochinski Silva é professor e Coordenador do curso de Relações Internacionais na Universidade Federal de Roraima.

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