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Assim se propaga um vírus dentro de um avião

Os passageiros sentados perto do primeiro infectado são os mais expostos, mas o vetor mais perigoso é a tripulação da cabine

Desinfecção de um Tupolev Tu-154.
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Miguel Ángel Criado
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Em 25 de abril de 2009, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou sobre um surto no México do que na época era conhecido como gripe suína, pedindo medidas para evitar sua propagação internacional. O que as autoridades de saúde não sabiam é que o vírus (a gripe A H1N1) já havia chegado a Auckland, na Nova Zelândia, a bordo de um avião. Agora, um estudo modelou o risco de que uma doença infecciosa se propague durante um voo. Embora seja baixa, a probabilidade de infecção aumenta quanto mais perto você estiver do infectado – e se ele for um membro da tripulação.

Horas antes de a OMS lançar seu alerta sobre a nova gripe, havia pousado no aeroporto de Auckland um Boeing 747 procedente de San Diego (EUA). Entre seus quase 400 passageiros, regressavam cerca de 20 estudantes que haviam estado no norte do México. Nove deles embarcaram já doentes. Treze horas mais tarde, outras cinco pessoas, talvez oito, desceram doentes do avião. Nas semanas seguintes, mais de 1.000 neozelandeses precisaram ser internados. Durante toda a epidemia, 49 morreram. No final de 2009, 18% da população do país tinha sido exposta ao vírus, ou seja, desenvolveu anticorpos contra essa cepa do H1N1.

Não há como saber se apenas aqueles estudantes levaram a nova gripe à Nova Zelândia, mas “foram os primeiros casos de gripe pandêmica conhecidos no país”, conta num e-mail o epidemiologista Michael Baker, da Universidade de Otago (Nova Zelândia). “[Os casos] foram detectados em 25 de abril de 2009, mesmo dia em que a OMS declarou que o surto da nova pandemia A H1N1 era uma emergência de saúde pública de importância internacional.”

Baker pôde acompanhar os garotos e outras 100 pessoas que se sentaram com eles na parte posterior do avião. Aquele seguimento permitiu comprovar que os passageiros que se infectaram durante o voo estavam a não mais de duas fileiras de distância dos estudantes doentes, tanto na frente como atrás ou nas laterais. “A pandemia nos ofereceu uma oportunidade única para estudar o risco de transmissão da gripe durante um voo. Como se tratava de um vírus completamente novo na Nova Zelândia, sabíamos que o único ponto de onde podia vir era de outros passageiros do voo”, escreveu na época o cientista neozelandês. “É tranquilizador saber que houve poucas infecções e que elas só ocorreram entre passageiros que estavam perto dos infectados. Isso indica que a transmissão ocorreu mais entre gotas lançadas durante uma tosse ou um espirro do que por meio de minúsculos aerossóis dispersos através do sistema de ar condicionado do avião”, completou.

O vírus H1N1 chegou à Nova Zelândia com um grupo de estudantes que o transmitiram a várias pessoas no avião

Essa proximidade com os primeiros infectados é conhecida como “norma das duas fileiras” e foi comprovada em outros casos de infecção em voo. A OMS e as autoridades de aviação civil a incluem em suas diretrizes para examinar e controlar os passageiros em casos de alertas de epidemia. No entanto, um grupo de matemáticos e sanitaristas acaba de confirmar a norma, mas com nuances. Além da posição em que os passageiros estão sentados, é preciso levar em conta todos os seus movimentos e os dos tripulantes da cabine.

No maior experimento já feito sobre uma possível propagação de vírus a bordo de aeronaves, os pesquisadores realizaram cerca de 10 voos em aviões de companhias aéreas. Partindo de Atlanta (EUA), eles viajaram a vários destinos do oeste dos EUA – San Diego, Los Angeles, San Francisco e Portland – em viagens de ida e volta. Em cada trecho, anotaram todos os movimentos dos passageiros. Por exemplo, quando se levantavam para pegar algo no compartimento de bagagens, iam ao banheiro, tocavam com suas mãos o encosto dos assentos...

“As doenças respiratórias se espalham com frequência nas populações através de um contato próximo”, afirma Vicky Hertzberg, professora da Escola de Enfermagem da Universidade Emory (EUA) e principal autora do estudo. “Queríamos determinar o número e a duração dos contatos sociais entre os passageiros e os tripulantes.”

Publicado na revista PNAS, o estudo concluiu que, dos 1.540 passageiros controlados, 38% não se levantaram do assento durante todo o voo; outros 38% o fizeram uma vez; 13%, duas vezes; e 11%, mais de duas vezes. Em média, passaram 5:25 minutos em movimento. O destino principal de suas idas e vindas foi o banheiro. Os pesquisadores também observaram que existe uma relação entre a localização da poltrona e a probabilidade de se levantar, o que parece lógico: cerca de 80% das pessoas sentadas no corredor se levantaram, contra 60% das que estavam no meio e apenas 40% das sentadas na janela.

Os passageiros situados nas duas fileiras da frente ou de trás, ou sentados ao lado do doente, têm 80% de chances de serem infectados

Embora não fosse o objetivo primordial do estudo, os autores também tomaram amostras de ar e de pontos importantes da cabine, como o apoio para braços, as mesinhas dos assentos e a porta do banheiro. A maioria dos voos foi realizada em plena temporada de gripe, mas não se detectou nenhum caso de infecção nem a presença de algum dos 18 tipos de vírus respiratórios que os cientistas procuraram nas amostras.

Com base em padrões de conduta, os pesquisadores estimaram a chance de contágio se um dos passageiros (situado virtualmente no assento 14C) ou um tripulante embarcasse com gripe ou outro vírus respiratório. Segundo eles, a probabilidade de que um passageiro qualquer se contagiasse durante o voo era muito baixa, próxima de 3%. Mas a porcentagem pode chegar a 80% se tivermos o azar de sentar na fileira da frente ou de trás ou num dos dois assentos laterais. A posição perde força como fator de risco se o primeiro infectado for um membro da tripulação. Nesse caso, a chave é a proximidade em relação ao tripulante, que pode infectar até 4,6 pessoas por voo.

“Os padrões de movimento são essenciais, com a ocorrência de milhares de contatos próximos”, diz Howard Weiss, professor de matemática do Instituto de Tecnologia da Geórgia (Georgia Tech, EUA) e coautor do estudo. “Mas a quantidade total de tempo que um passageiro saudável passa dentro do raio de um metro de um passageiro infectado é pequena se você não está sentado a um metro dele.”

Os autores da pesquisa reconhecem algumas limitações que poderiam afetar os resultados. Por um lado, não fizeram o estudo com um doente já confirmado em cada voo. Além disso, os voos duraram entre três e cinco horas e meia. A situação seria bem diferente num voo internacional. Mas o maior problema é que existem vírus que são transmitidos pelo ar mesmo sem a pessoa tossir, e não é fácil modelar o movimento do ar dentro de uma cabine durante um voo de longa duração. Todas essas limitações debilitam a lei das duas fileiras.

Uma perigosa exceção a essa regra ocorreu em junho de 2005, quando um surfista brasileiro voltou de um torneio nas ondas das Maldivas infectado com sarampo. Ele não tinha se vacinado contra o vírus da doença. Até chegar à sua casa, e durante o período de incubação e possível contágio, ele tomou cinco aviões. Até seis pessoas que viajaram nas mesmas cabines foram infectadas. Num dos voos, ele contagiou um adulto e um menino, ambos não vacinados. O que mais chama atenção no caso é que nenhuma dessas transmissões cumpriu com a norma das duas fileiras, já que as pessoas estavam mais distantes do brasileiro. Embora a vacinação generalizada tenha contido o surto, cerca de 72.000 pessoas precisaram ser vacinadas no Brasil.

Após tomar cinco voos, um surfista transmitiu sarampo para várias pessoas e obrigou a vacinação de outras 70.000

“Certas infecções são mais fáceis de transmitir do que outras. O sarampo é muito contagioso, por exemplo, e muitas pessoas poderiam se infectar num avião se não estiverem vacinadas e se houver alguém com sarampo no mesmo voo”, afirma Isaac Bogoch, especialista em doenças contagiosas do Instituto de Pesquisa do Hospital Geral de Toronto (Canadá), cujos estudos abrangem uma gama de situações: dos riscos de propagação da peste a partir de Madagascar até a eficácia dos controles aplicados nos aeroportos durante a epidemia do ebola em 2014. “Existe o risco de infecção pelo vírus ebola, mas [a pessoa] teria que ter um contato muito próximo com o passageiro doente”, afirma. São riscos que devem ser determinados. Afinal, todo ano mais de três bilhões de passageiros sobem a um avião.

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