Xi no poder e as contradições da China que vive o auge dos protestos sociais
Não é apenas implicância ocidental encarar com desconfiança a perpetuação do líder chinês no poder
A era pós-Mao Tsé-Tung, marcada pela implantação de reformas políticas e econômicas na China, nunca indicou uma democracia nos moldes ocidentais, mas garantiam a alternância de poder, que se sucedia de forma regular e constante pela primeira vez na história. Ao que tudo indica, o experimento não durou mais que 40 anos e a China volta a operar por meio de seu modus operandi milenar: o regime estendido e o poder ilimitado de um homem só.
Nesta segunda-feira, o Partido Comunista Chinês (PCC) aprovou dezenas de alterações no texto da constituição chinesa e a menor delas é, sem dúvida, a que causou a maior repercussão em nível global: a de retirar o limite de dois mandatos seguidos da presidência. Analisando o conjuntos de emendas, parece-me claro que a mudança está diretamente relacionada com a permanência indefinida de Xi Jinping no Governo para executar todas as reformas planejadas para as próximas décadas. As razões que me levam a essa conclusão são autoevidentes: a palavra “reforma” foi adicionada em diversos trechos do novo texto, ao mesmo tempo em que Xi passa a ser legalmente exaltado como um líder a ser cultuado.
A medida não é necessariamente uma surpresa, mas a repercussão internacional entre sinólogos, ativistas e jornalistas tem sido marcada pela apreensão, incerteza e medo de mais repressão, uma vez que o processo tem sido feito com pouca transparência não apenas para os observadores de fora, mas principalmente dentro da China. O texto que introduz as emendas não vai além de palavras vagas e da repetição de mantras que ressaltam a importância da medida para desenvolver o socialismo com características chinesas numa nova era (frase coringa usada para qualquer decisão do PCC). Sem alardes, o jornal chinês Diário do Povo não reportou a notícia na primeira página.
O novo texto da Constituição inclui a orientação teórica do pensamento de Xi ao lado de Marx, Lenin, Mao e Deng Xiaoping. Não é pouca coisa. A tendência de interpretar a mudança com a desconfiança de que estamos assistindo à re-emergência do culto à personalidade, que sempre tem custos altíssimos em termos de direitos humanos, não é uma mera implicância ocidental. A propaganda do PCC tem chamado Xi de lingxiu, que significa uma espécie de liderança especial - expressão que só havia denotado Mao.
Como boa parte da cobertura ocidental, muito alarde tem sido feito, abusando das expressões “ditador” ou mesmo dizendo que o PCC é a mais nova dinastia. Sophie Richardson, da Human Rights Watch, disse ontem no Twitter que a nova emenda implica mais tortura, perseguição das minorias e brutalidade. Mas, mesmo que deixemos de pesar a mão na crítica abdicando de uma posição tão radicalmente contrária à emenda, não há razão para otimismo.
Poderíamos - e deveríamos - aqui fazer o esforço relativista de compreender a China em seus próprios termos, respeitando sua soberania, partindo do princípio de que somente a própria China pode intervir sobre sua política interna e seu desenvolvimento. Também poderíamos estender esse esforço para entender que a emenda visa a executar plenamente um plano de nação que se considera que está indo bem em suas metas. O limite desse exercício reflexivo se esbarra justamente na forma como o processo tem repercutido na própria população chinesa. Na verdade, não há como saber. Desde ontem, os censores estão atuando de forma intensa, retirando rapidamente todos as críticas e memes que circulam na Internet nas redes sociais Weibo e WeChat. Para quem está na China, as informações que se tem da reação da sociedade são esparsas. Diversos colegas chineses a quem contatei estão se informando pela imprensa internacional.
Dentre os conteúdos que têm sido varridos para debaixo do tapete estão frases que chamam Xi de imperador e memes que substituem a famosa foto de Mao, na Praça da Paz Celestial, pela de Xi. Outro post que circulou intensamente parece retratar o sentimento de muitos: dentro de um avião, sente-se que a aeronave mudou de rota, mas a cabine do piloto é tão blindada que ninguém consegue chegar para perguntar o que está acontecendo.
O mandato de Xi tem sido marcado pelo crescimento econômico controlado, combate à corrupção e investimento em ciência e tecnologia. Xi também tem uma longa trajetória intelectual de estudo da pobreza chinesa e observa de perto a questão. A China conseguiu o feito extraordinário de remover 800 milhões de pessoas da pobreza e extingui-la até 2020. Junto com a prosperidade interna, o mandato de Xi é marcado pela orientação que visa firmar a China como uma potência econômica e militar global. Na medida em que o “sonho chinês” se torna bem-sucedido em alguns de seus pilares centrais e fabrica-se a confiança de que o desenvolvimento está no rumo certo, aumentam a criminalização dos protestos e o biopoder. Trata-se de uma contradição histórica do PCC que a nova medida só tende a acirrar.
A China está, justamente, em um momento da história em que há um recorde de greves, protestos e ativismo por justiça social, contra a corrupção e por responsabilidade fiscal e social. É sempre muito difícil estimar o número de protestos, mas sabemos que o país vive um processo de insurgência de novas subjetividades contestadoras. São centenas de milhares de registros por ano de novos “incidentes em massa” - a expressão para protesto e desobediência civil na China - nas mais diversas áreas, além dos processos legais contra autoridades. Por outro lado, como mostram as análises já clássicas de Elizabeth Perry e Ching Lee, a grande maioria dos movimentos emergentes é direcionada aos oficiais de médio e baixo escalão e não ameaça a estabilidade do Governo central. Por essas razões, é impossível prever ou medir se haverá indignação popular contra a medida, porque não restam dúvidas que o Governo conterá e repreenderá violentamente as críticas. Assim se consolida o Governo mais repressivo da era pós-Mao.
Rosana Pinheiro-Machado é cientista social da Universidade Federal de Santa Maria. Realizou seu pós-doutorado no Centro de Estudos Chineses da Universidade de Harvard. É autora de três livros sobre a China, entre eles Counterfeit Itineraries in the Global South: the human costs of piracy in China and Brazil (Londres e Nova Iorque, 2017).
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