_
_
_
_
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Xi no poder e as contradições da China que vive o auge dos protestos sociais

Não é apenas implicância ocidental encarar com desconfiança a perpetuação do líder chinês no poder

Souvenirs com os rostos de Xi Jinping e Mao Tse Tung em Pequim.
Souvenirs com os rostos de Xi Jinping e Mao Tse Tung em Pequim.ROMAN PILIPEY (EFE)

A era pós-Mao Tsé-Tung, marcada pela implantação de reformas políticas e econômicas na China, nunca indicou uma democracia nos moldes ocidentais, mas garantiam a alternância de poder, que se sucedia de forma regular e constante pela primeira vez na história. Ao que tudo indica, o experimento não durou mais que 40 anos e a China volta a operar por meio de seu modus operandi milenar: o regime estendido e o poder ilimitado de um homem só.

Nesta segunda-feira, o Partido Comunista Chinês (PCC) aprovou dezenas de alterações no texto da constituição chinesa e a menor delas é, sem dúvida, a que causou a maior repercussão em nível global: a de retirar o limite de dois mandatos seguidos da presidência. Analisando o conjuntos de emendas, parece-me claro que a mudança está diretamente relacionada com a permanência indefinida de Xi Jinping no Governo para executar todas as reformas planejadas para as próximas décadas. As razões que me levam a essa conclusão são autoevidentes: a palavra “reforma” foi adicionada em diversos trechos do novo texto, ao mesmo tempo em que Xi passa a ser legalmente exaltado como um líder a ser cultuado.

Mais informações
China pretende crescer no mínimo 6,5% ao ano até 2020
A moda perigosa de investir em Bolsa na China
China promove um papel econômico decisivo para a iniciativa privada
China atrai Brasil e mais 44 países a banco nascido de costas para os EUA

A medida não é necessariamente uma surpresa, mas a repercussão internacional entre sinólogos, ativistas e jornalistas tem sido marcada pela apreensão, incerteza e medo de mais repressão, uma vez que o processo tem sido feito com pouca transparência não apenas para os observadores de fora, mas principalmente dentro da China. O texto que introduz as emendas não vai além de palavras vagas e da repetição de mantras que ressaltam a importância da medida para desenvolver o socialismo com características chinesas numa nova era (frase coringa usada para qualquer decisão do PCC). Sem alardes, o jornal chinês Diário do Povo não reportou a notícia na primeira página.

O novo texto da Constituição inclui a orientação teórica do pensamento de Xi ao lado de Marx, Lenin, Mao e Deng Xiaoping. Não é pouca coisa. A tendência de interpretar a mudança com a desconfiança de que estamos assistindo à re-emergência do culto à personalidade, que sempre tem custos altíssimos em termos de direitos humanos, não é uma mera implicância ocidental. A propaganda do PCC tem chamado Xi de lingxiu, que significa uma espécie de liderança especial - expressão que só havia denotado Mao.

Como boa parte da cobertura ocidental, muito alarde tem sido feito, abusando das expressões “ditador” ou mesmo dizendo que o PCC é a mais nova dinastia. Sophie Richardson, da Human Rights Watch, disse ontem no Twitter que a nova emenda implica mais tortura, perseguição das minorias e brutalidade. Mas, mesmo que deixemos de pesar a mão na crítica abdicando de uma posição tão radicalmente contrária à emenda, não há razão para otimismo.

Poderíamos - e deveríamos - aqui fazer o esforço relativista de compreender a China em seus próprios termos, respeitando sua soberania, partindo do princípio de que somente a própria China pode intervir sobre sua política interna e seu desenvolvimento. Também poderíamos estender esse esforço para entender que a emenda visa a executar plenamente um plano de nação que se considera que está indo bem em suas metas. O limite desse exercício reflexivo se esbarra justamente na forma como o processo tem repercutido na própria população chinesa. Na verdade, não há como saber. Desde ontem, os censores estão atuando de forma intensa, retirando rapidamente todos as críticas e memes que circulam na Internet nas redes sociais Weibo e WeChat. Para quem está na China, as informações que se tem da reação da sociedade são esparsas. Diversos colegas chineses a quem contatei estão se informando pela imprensa internacional.

Dentre os conteúdos que têm sido varridos para debaixo do tapete estão frases que chamam Xi de imperador e memes que substituem a famosa foto de Mao, na Praça da Paz Celestial, pela de Xi. Outro post que circulou intensamente parece retratar o sentimento de muitos: dentro de um avião, sente-se que a aeronave mudou de rota, mas a cabine do piloto é tão blindada que ninguém consegue chegar para perguntar o que está acontecendo.

O mandato de Xi tem sido marcado pelo crescimento econômico controlado, combate à corrupção e investimento em ciência e tecnologia. Xi também tem uma longa trajetória intelectual de estudo da pobreza chinesa e observa de perto a questão. A China conseguiu o feito extraordinário de remover 800 milhões de pessoas da pobreza e extingui-la até 2020. Junto com a prosperidade interna, o mandato de Xi é marcado pela orientação que visa firmar a China como uma potência econômica e militar global. Na medida em que o “sonho chinês” se torna bem-sucedido em alguns de seus pilares centrais e fabrica-se a confiança de que o desenvolvimento está no rumo certo, aumentam a criminalização dos protestos e o biopoder. Trata-se de uma contradição histórica do PCC que a nova medida só tende a acirrar.

A China está, justamente, em um momento da história em que há um recorde de greves, protestos e ativismo por justiça social, contra a corrupção e por responsabilidade fiscal e social. É sempre muito difícil estimar o número de protestos, mas sabemos que o país vive um processo de insurgência de novas subjetividades contestadoras. São centenas de milhares de registros por ano de novos “incidentes em massa” - a expressão para protesto e desobediência civil na China - nas mais diversas áreas, além dos processos legais contra autoridades. Por outro lado, como mostram as análises já clássicas de Elizabeth Perry e Ching Lee, a grande maioria dos movimentos emergentes é direcionada aos oficiais de médio e baixo escalão e não ameaça a estabilidade do Governo central. Por essas razões, é impossível prever ou medir se haverá indignação popular contra a medida, porque não restam dúvidas que o Governo conterá e repreenderá violentamente as críticas. Assim se consolida o Governo mais repressivo da era pós-Mao.

Rosana Pinheiro-Machado é cientista social da Universidade Federal de Santa Maria. Realizou seu pós-doutorado no Centro de Estudos Chineses da Universidade de Harvard. É autora de três livros sobre a China, entre eles Counterfeit Itineraries in the Global South: the human costs of piracy in China and Brazil (Londres e Nova Iorque, 2017).

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_