_
_
_
_
_
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Catástrofe na decoração: o drama das cozinhas feias

Azulejos espantosos. Móveis deprimentes. Bancadas para chorar. Tudo isso e muito mais no especial ‘cozinhas feias’ do 'El Comidista', a sessão de culinária do EL PAÍS, em que três especialistas julgam crimes contra a decoração e a humanidade em geral

Faixa de azulejos, bancada de granito e móveis cor mel: uma combinação letal
Faixa de azulejos, bancada de granito e móveis cor mel: uma combinação letalFORODECORACIÓN

Se alguma vez você alugou ou comprou um apartamento, certamente já topou com uma delas. Se não, talvez a dos seus pais seja assim. Pequenas ou grandes, velhas ou novas, caras ou baratas, o que as une é a deprê estética que bate assim que você pisa em uma delas. São as cozinhas feias, esses espaços tão frequentes em qualquer lugar do mundo, onde não dá a mínima vontade de cozinhar – melhor morrer de inanição para deixar de sofrer.

O século XX nos legou uma rica tradição de cozinhas espantosas, caracterizadas por azulejos com desenhos ou frisos, bancadas de granito e armários saídos do cenário de A Grande Família. Mas a modernidade tampouco melhorou as coisas, e a condição de novos-ricos empurra os donos de imóveis a criarem as mais estridentes combinações de cerâmica escura, porcelanatos cintilantes e armários com cores berrantes. Isso quando a pessoa não tem a genial ideia de deixar absolutamente tudo branco, para dar à nossa cozinha a alegria de um centro cirúrgico.

Por que tantas cozinhas esteticamente lamentáveis? O que fazemos de errado para que o lugar onde preparamos a comida fique tão feio? Raquel Veira, editora do site espanhol Decosfera, diz que o maior problema nas cozinhas decorre da combinação de cores. “Há alguns anos a tendência era usá-las naturais, em tons mais para o escuro: madeira ou imitação nos móveis, e cor de areia para as paredes. Depois passamos para cores intensas de todo tipo; agora perdemos a mão com o branco. É difícil encontrarmos o equilíbrio.”

Tachy Mora, jornalista especializada em design e decoração, aponta seu dedo acusador para as faixas nas paredes azulejadas. “Elas me dão cãibras nos olhos. Se você não tem grana para mudar os azulejos, pelo menos cubra com tinta.” Também aponta um drama habitual nas cozinhas dos apartamentos postos para alugar: a falta de limpeza e o mau estado dos móveis. “É o mais importante para que uma cozinha passe de deteriorada a aceitável. A mudança é substancial quando você faz desaparecer a camada de gordura acumulada e ajusta as dobradiças das portas.”

A terceira integrante do nosso Supremo Tribunal para os Crimes contra a Cozinha, Patricia Tablado, acha que o problema pode estar na passagem do tempo, e não exatamente no envelhecimento dos materiais. “A moda sofre reviravoltas bruscas, e uma cozinha que hoje é o máximo (como as de alto brilho há alguns anos) em cinco anos fica terrivelmente brega.” A atual community manager do blog El Comidista, que conta com um obscuro passado como jornalista de decoração, abomina “o granito rosa-alaranjado nas bancadas” e manifesta sua preocupação com “as fantasias multicoloridas”. “Ficam bárbaras nos desfiles de Agatha Ruiz de la Prada, mas deparar-se com elas todas as manhãs na cozinha pode ser um pouco demais.”

Apresentadas as nossas magistradas, começamos sem mais preâmbulos a julgar alguns delitos contra a decoração – e contra a higiene – que encontramos na Internet.

Querida, por que não pintamos a cozinha?

Iniciamos a sessão com uma cozinha onde alguém achou que seria uma boa ideia combinar um rosa pálido na parede, um marrom-piriri no chão e um cinza-esgoto nos armários. “Quem inventou a expressão ‘gosto não se discute’ voltaria atrás se visse esta cozinha”, afirma Raquel Veira. “Não entendo a decoração de espelhos (?) sobre a parede do micro-ondas, e duvido que tenha um exaustor”, acrescenta Patricia Tablado. “Tenho a sensação de que pintar a parede ou os móveis de branco resolveria alguma coisa, mas não sei o quê.”

O esplendor do Barroso

“É isto isso que chamam de estilo eclético?”, pergunta Tachy Mora. Eclético com influência do Barroso, diria eu. Esta cozinha, que pretende ser antiga, nota-se falsa e fica no dramático meio-termo do quero, mas não consigo. “Não serei eu a criticar os móveis da cozinha da casa dos meus pais”, afirma Veira, “então neste caso centrarei minha atenção nas paredes e no piso. Quando o orçamento para a reforma da cozinha é ajustado, às vezes se opta por trocar só o mobiliário, e acaba que o remédio é pior que a doença. A cozinha de madeira tem seu encanto em um contexto de estilo rústico, mas esses azulejos… Esses azulejos são o mal!”

Fogão sobre fogão

Entramos no asqueroso território da cozinha gordurenta, com infinitos objetos nunca maculados pelo sabão, e fogões em estratos sobrepostos dignos de serem analisados em uma aula de Geologia. “Acredito que o pote de chocolate solúvel vai precisar ser submetido a um teste de carbono-14 quando o desincrustarem daí”, teme Tablado. “Não nos deixemos distrair pelo fogareiro sobre o fogão”, alerta Mora. “Os fogões portáteis são muito legais. Essa cozinha precisa primeiro de uma passada da Monica de Friends, e depois, quando já pudermos ver o que ou quem está aí debaixo, então poderemos apurar as responsabilidades com fundamento.”

Luxo e miséria

Não sei se esta cozinha pertence a um espanhol, a um xeque árabe ou a um magnata russo do petróleo. Só sei que não consigo parar de pensar nela desde que a vi no Twitter, e preciso compartilhar com o mundo seus móveis com capitonê, seus puxadores Svarovski e seu forno gritando “me tirem daqui”. “Por que colocam uma cozinha em um quarto de sanatório psiquiátrico?”, exclama Mora. “O gás ou o forno podem terminar tendo consequências fatais.” “Acho um toque de classe ter na bancada as urnas com as cinzas da sua avó, para que lhe inspirem enquanto você cozinha”, aplaude Tablado. “Não me perguntem o porquê”, arremata Veira, “mas a primeira coisa que me vem à cabeça é o forro do interior de um caixão”.

Paixão pelo azulejado

A amplitude de espaço garante uma cozinha bonita, certo? Esta imagem oferece a resposta. “Às vezes, é melhor ter uma cozinha pequena e menos possibilidades de meter os pés pelas mãos”, aponta Veira. A foto também demonstra que a ilha, esse sonho de tantos chefs amadores, pode virar um pesadelo se for coroada com um catafalco de exaustor-chaminé. “Já não se usam mais as coifas forradas de azulejos, mas entendo que os donos da casa ficaram tão fascinados pela faixa de azulejos que não resistiram a lhe dar mais protagonismo”, explica Tablado. “Por que pararam por aí? Por que não revestiram também a geladeira com esses inefáveis azulejos?” Mora, por sua vez, declara impedimento de consciência: “Não posso comentar esta foto, tenho cãibras”.

Versace na sua cozinha

Se um espaço amplo não garante o sucesso na decoração, o dinheiro menos ainda. O que você vê na imagem seguramente custou muitos milhares de reais, mas é difícil imaginar alguém cozinhando em um ambiente tão grotesco. No máximo Donatella Versace tomando uma infusão e um Epocler para a ressaca. “Há poucas coisas tão tristes em decoração como o luxo mal entendido”, declara Veira, taxativa. “Esbanjar dinheiro em materiais nobres mal combinados para compor um cômodo com péssima funcionalidade deveria ser tipificado como delito.”

Marrom obscuro

Diante desta cozinha sinto todo o peso histórico da Europa mais austera, com seus nobres vestidos de preto e sua intolerância a qualquer forma de alegria. Mas certamente é tudo uma paranoia, e a tristeza que nos invade ao vê-la se deve a questões menos elevadas, como me esclarece Tachy Mora. “Lição de primeiro módulo do curso de decoração de interiores: não se colocam móveis escuros quando um espaço não tem muita luz natural”. Raquel Veira aborda outro ponto aterrador: “O pior é que essas portas de treliça por trás das quais se tenta esconder o micro-ondas e outras coisas terão sido vendidas com o nome de ‘embelezador’”.

A modernidade cria monstros

Você achava que só iríamos rir de cozinhas velhas? Pois se enganou. Eis aqui uma monstruosidade bem fresquinha, saída da mente de algum decorador que quis submeter seus clientes a uma tortura psicológica. “Este é o problema de tentar juntar todas as tendências modernas: eletrodomésticos de aço inoxidável, color block, balcão de café da manhã e paredes coloridas. É melhor apostar numa só tendência, e deixar o resto neutro”, aconselha Patricia Tablado. “Para mim está bem claro”, concorda Veira. “Eu deixaria o piso e os eletrodomésticos, e mudaria os móveis. Com quatro rodas, talvez pudesse ser reciclado como carro de Fórmula 1: se não me engano, ‘laranja-mamão’ foi a cor que Fernando Alonso pediu para sua McLaren neste ano”.

Maldito tabuleiro

Não sei o que desencadeou a moda do tabuleiro de xadrez na decoração de cozinhas – as bandeiras da Fórmula 1? A rivalidade entre Karpov e Kasparov? –, mas é como os piolhos nas escolas: um problema que nunca some de vez. “É como esses discos de cantores dos quais ninguém gosta, mas que acabam sendo campeões de vendas”, lamenta Veira. O estranho é que na cozinha da imagem só faltou colocarem o quadriculado nas cadeiras, na mesa e nas laranjas e maçãs da fruteira. “O habitual é que esteja no chão, e não na parede. Será que confundiram a planta baixa com o corte?”.

Escritório na cozinha

O que é isto? Uma cozinha? Um home office? Um depósito de móveis usados? Aí vão as especulações das nossas especialistas. Para Mora, “é o resultado depois de ler um desses artigos do tipo Ideias para fazer uma área de escritório na cozinha, que além disso em seu interior linkava com outro do tipo Seis razões pelas quais sua cozinha deveria ter uma ilha. E foi assim que nasceu o escritório-ilha”. Veira sente cheiro de reutilização de restos: “A mudança coincidiu com uma rejuvenescida no trabalho, e meteram o móvel velhinho da sala de reuniões na cozinha. Fica péssimo, pois é, mas cavalo dado não se olha os dentes, e além do mais já puseram aí o porta-garrafas, caso seja preciso se entregar à bebida para esquecer como a decoração é espantosa”.

Vai que os avós aparecem

Pela primeira vez, e sem que sirva de precedente, a aparição de surpresa das duas poltroninhas dos vovôs nesta cozinha suscita a aprovação unânime do júri. Tablado: “São perfeitos se você quiser lavar os pratos comodamente”. Mora: “Parece uma ótima ideia para tirar uma pestana enquanto se faz o cozido na panela de pressão”. Veira: “Isto é um dez em funcionalidade, porque deixa os avós vigiando a comida e você se despreocupa”. Esta última acrescenta um voto particular: “Em termos de estética já é um pouquinho mais capenga”. Só um pouquinho.

Cozinhe enquanto se alivia

Com os aluguéis nas nuvens em muitas cidades, alguns proprietários sem escrúpulos põem no mercado coisas grotescas como esta, que unem a privada com a cozinha sem qualquer tipo de preocupação. “O grande acerto aqui é o espelho, que sempre ajuda muito a fazer os espaços pequenos parecerem maiores”, afirma Tachy Mora, irônica. Se você conseguir superar a repugnância, pode ver o assunto sob um ponto de vista histórico, como Patricia Tablado. “Ainda ontem estava lendo num livro da Mary Beard que nas casas dos ricos romanos havia latrinas ao lado das cozinhas, para poder jogar os restos ali. Vai ver o arquiteto queria homenagear os clássicos.”

Brilho que cega

Não sei se é muito prático precisar de óculos de sol cada vez que você entra na cozinha, mas o fato é que as cores brilhantes caíram no gosto popular. Um bom exemplo disso é esta imagem, cuja combinação de preto e fúcsia nos devolve às ombreiras, aos hits do Ritchie e a outros fatos vergonhosos dos anos oitenta. “A culpa disto é dos programas de culinária na TV”, denuncia Veira, “que escolhem o verde-limão para a sua cozinha e nos fazem acreditar que todas as cores vivas e intensas são uma boa opção para bancadas. Mas depois ninguém vem trocar a nossa cozinha gratuitamente a cada temporada”.

A sujeira também é feia

Alguém mais tem a sensação de que se você entrar nesta cozinha e por acaso tocar em algo ficará grudado e morrerá como um passarinho caçado com visgo? “C-Â-N-D-I-D-A, P-O-R F-A-V-O-R”, grita Mora diante dessa visão. “Uma coisa é ter baixo orçamento, pouco espaço ou mesmo algo de mau gosto, e outra é ser porco”, indigna-se Veira. “E publicam a foto assim na Internet, para vender ou alugar!”

Obrigado a Sabina Urraca por nos passar algumas das fotos deste artigo.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_