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Coluna
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Com areia na boca

A crise do Oriente Médio já não é só o conflito árabe-israelense

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, cumprimenta o rei da Arábia Saudita, Salman bin Abdulaziz al-Saud, em encontro de maio de 2017
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, cumprimenta o rei da Arábia Saudita, Salman bin Abdulaziz al-Saud, em encontro de maio de 2017BANDAR AL-JALOUD (AFP)
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Em questões históricas, como no Direito Penal, o desconhecimento da lei não exime do seu cumprimento. Uma vez, houve um “contador da política” que pôde evitar a Segunda Guerra Mundial. Seu nome: Neville Chamberlain, primeiro-ministro do Reino Unido. Era um homem muito ignorante, especialmente sobre o que acontecia em seu país. E esse desconhecimento, agravado por sua falta de capacidade política, permitiu que Adolf Hitler comprovasse que as democracias ocidentais não tinham capacidade de resposta. Que Donald Trump ignore tudo sobre o mundo moderno tampouco o exime de cumprir as leis que o regulam.

A primeira viagem oficial de Trump ao exterior foi à Arábia Saudita, onde bailou a dança das espadas e ficou muito contente ao vender milhões em armas, que, a qualquer momento, podem incendiar o mundo. Porque depois da visita, o rei Salman, de 81 anos, nomeou como príncipe herdeiro seu filho Mohamed bin Salman (MBS), o homem que liquidou o pacto da Casa de Saud, concentra agora todos os poderes em Riad e entendeu que tem via livre para cumprir sua vontade.

Para deixar isso claro, o jovem príncipe realizou um expurgo no estilo de Stálin, prendendo ministros, parentes, príncipes, ricos, altos funcionários e todos aqueles que, de alguma maneira, o atrapalhavam para mudar o país e romper com os equilíbrios de poder que mantiveram a ultraconservadora dinastia no trono do Reino do Deserto – desde que o britânico Lawrence se entendeu com Faiçal I do Iraque e da Síria, na Primeira Guerra Mundial, destruindo o Império Otomano pelas costas. Trump regressou a esse cenário, levado por sua ignorância, e apoiou as ações e o futuro que MSB encarna.

Em 1973, ninguém podia imaginar que o conflito árabe-israelense terminaria deixando o Ocidente de joelhos, graças ao embargo decretado pela OPEP. As longas filas nos postos de gasolina e a intensa destruição dos orçamentos nacionais que acompanharam a primeira crise do petróleo, mergulhando o planeta num período de baixo crescimento e altas taxas de inflação e desemprego, demonstraram que ter a chave do óleo significava um poder decisivo na hora de provocar um curto-circuito nas bases do desenvolvimento industrial internacional.

Como se não bastasse, a guerra, outra vez permitida e alimentada pelos Estados Unidos, entre o Iraque de Saddam Hussein – naquele momento, um confiável amigo – e o Irã de Khomeini, voltou a colocar o mundo contra as cordas porque, simplesmente, afundando os grandes petroleiros no Estreito de Ormuz, o ouro negro não chegaria ao Ocidente.

Hoje, o petróleo tem uma importância estratégica diferente. Os EUA conseguiram plena independência, mudando sua regulação, aumentando suas reservas e exportando agressivamente o gás de xisto. Além disso, a dependência energética da Europa em relação à rede de gasodutos dominada por Putin abriu espaço para novos jogadores no tabuleiro, o que ninguém podia imaginar em 1973.

A crise do Oriente Médio já não é só o conflito árabe-israelense. Agora, é a continuação da guerra religiosa desencadeada com o ataque às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001. E o certo é que a maioria dos terroristas eram sauditas renegados que, ao derrubar as torres, iniciaram uma dupla jihad. Primeiro contra o Ocidente, depois contra os xiitas – que, apesar de serem minoria no mundo muçulmano, deram ao Irã um enorme poder militar e uma grande influência na região.

Com esses jogos surgidos da mudança na estrutura energética dos EUA, a profunda ignorância do presidente Trump e a aventura de querer democratizar a região por parte de Obama, o resultado é muito simples. Uma possível crise na Europa, independentemente de ações como o bloqueio sobre o Catar, aumentaria o controle da Rússia sobre o desenvolvimento energético europeu, já que seu gás continua sendo o elemento vital que mantém o desenvolvimento do Velho Continente.

Além disso, Putin entendeu que não pode deixar somente para a China de Xi Jinping o controle dos países petroleiros. Por isso, o presidente russo envia suas tropas à Síria, reforça Bashar al-Assad, coloca suas peças no tabuleiro do Líbano e resgata financeiramente a Venezuela, junto com a China, para tentar desconectar a relação financeira entre esse país latino-americano e os EUA.

Temos areia na boca e estamos a ponto de afogar, mas não é o deserto da Península Arábica o que mais nos asfixia neste momento. São os donos do petróleo e as influências estratégicas que mudam na mesma velocidade que o fizeram quando a Segunda Guerra Mundial terminou.

Enquanto isso, o mundo olha para si mesmo e para tudo o que não se entende, da Catalunha ao Brexit, dos nazistas sentados no Bundestag às possibilidades de sobrevivência do modelo de austeridade e correção fiscal europeia frente às demandas sociais, da América que tem um papel menos relevante no mundo às cartas em forma de árabes, petróleo, domínio financeiro e estratégico, que vão se concentrando cada vez mais nas mãos da China e da Rússia.

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