Diante da insurreição, a lei – mas não só a lei
O que Rajoy precisa esclarecer é o que está disposto a fazer para que este país e suas dezessete autonomias tenham um projeto de futuro, com democracia e convivência pacífica
O Governo da nação de um lado e o da Generalitat (a autoridade catalã) de outro se apressaram neste domingo a cantar vitória depois do dia vergonhoso que os cidadãos da Catalunha se viram obrigados a vivenciar em função da arrogância xenófoba —em aliança com as forças antissistema— que Carlos Puigdemont representa, e a absoluta incapacidade de gestão do problema por parte de Mariano Rajoy desde o início dessa crise.
Longe de uma vitória de qualquer um dos que infelizmente já podemos chamar de dois lados do conflito, o que se viu foi uma derrota para nosso país, para os interesses e os direitos de todos os espanhóis, sejam catalães ou de qualquer outro lugar da Espanha, para o destino de nossa democracia e para a estabilidade e o futuro do sistema de convivência que há quase quarenta anos criamos para nós mesmos.
Que fique bem claro que não somos em absoluto equidistantes quanto à responsabilidade que é necessário cobrar de quem causou esse destroço monumental em nossa democracia, do qual demoraremos anos para nos recuperar. Os principais culpados são o presidente da Generalitat e a presidenta do Parlament (órgão de Governo catalão) que há tempos deram início a um processo destinado a colocar os catalães em oposição entre si e a Catalunha com o resto da Espanha. Longe de se comportar como dirigentes de todos os cidadãos de seu país, exibiram impudicamente sua condição de facciosos, dando mostras de um incrível sectarismo. E o fizeram com desprezo à Constituição, ao Estatuto da Catalunha, a seus representantes democráticos e ao espírito e letra do Código Penal. Mas nem seus flagrantes delitos nem suas bravatas podem justificar a passividade e a imperícia do presidente Rajoy, sua afasia política, sua reiterada ausência diante da opinião pública e sua medrosa delegação de responsabilidades à Administração da Justiça, retorcendo para isso até o estatuto do Tribunal Constitucional e escudando-se nas decisões de outros ao não querer tomar para si as obrigações que lhe correspondiam.
Duas afirmações recentes do chefe de Governo bastam para ilustrar o que dizemos. Em primeiro lugar, a de que ninguém poderia ter imaginado que as coisas chegariam a esse extremo. E, em seguida, de forma reiterada —expressa inclusive no domingo, 1 de outubro, pelo ministro do Interior— a de que a atitude da Generalitat os está obrigando a fazer o que não queriam. Se não passou pela cabeça de Rajoy que aconteceria o que aconteceu deve ser porque há anos não lê os jornais, nem os da Catalunha nem os de Madri, e não assiste televisão. Contam-se às centenas, aos milhares, os artigos e declarações de políticos, intelectuais, empresários, líderes sociais, jornalistas e observadores de todo tipo que vêm, há anos, de um lado antecipando o que claramente preparavam os separatistas e anunciando, de outro, a necessidade de tomar a iniciativa para resolver questões não resolvidas da organização territorial da Espanha.
O presidente deve esclarecer se tem um projeto de futuro, com democracia e convivência pacífica
A afirmação do Governo de se ver obrigado a fazer o que não quer coloca em destaque que, com efeito, nunca soube o que queria e devia fazer a esse respeito. Talvez se veja agora, por sua vez, obrigado a fazer o que evidentemente nunca quis: contribuir para revisar a Constituição, abraçar os princípios federativos subjacentes à Espanha das autonomias e buscar o consenso político necessário para evitar a divisão entre espanhóis, dramaticamente explicitada nos acontecimentos de ontem e nos dias anteriores.
Há quase cinco anos nosso jornal publicou uma reflexão, fruto do debate comum em seu conselho editorial, sobre como reconstruir o futuro. Nela se explicava textualmente que “diante da gravidade da crise econômica que a Espanha atravessa, com seis milhões de desempregados e uma piora geral do nível de vida, sua importância empalidece se comparada à crise política e institucional que o país enfrenta”. E propúnhamos um decálogo de medidas entre as quais sobressaía a urgência de uma reforma da Constituição e a reconversão do Estado das Autonomias de acordo com o modelo federal. Nosso editorial terminava então chamando a atenção sobre a necessidade dos líderes políticos assumirem a tarefa de encabeçar um processo como esse e advertíamos que “se, acossados pela opinião pública e as sombras de seu passado, se encastelarem em seu ensimesmamento e fizerem ouvidos moucos às demandas da população, o regime da Constituição de 1978 correrá riscos desnecessários em futuro próximo”.
Pois bem, o futuro já chegou e se o chamado regime de 78 enfrenta uma crise de Estado tão grave como a que nos atinge não é devido principalmente ao populismo extremo dos leninistas nem aos okupas metidos a parlamentares que pretendem invadir as instituições para dinamitá-las. Responsabilidade maior recai sobre os partidos tradicionais e constitucionalistas, incapazes de se colocar de acordo em questões de Estado para promover as reformas urgentes e necessárias, com o encastelamento do PSOE nas ambições pessoais de seus dirigentes, e a defensiva do PP, acusado justamente de ser o mais corrupto dos partidos que já nos governou.
São injustificáveis em Rajoy sua passividade, sua imperícia e a delegação de responsabilidades
Talvez tenha razão a vice-presidenta do Governo ao criticar o senhor Iceta por pedir ontem a renúncia de Rajoy, acusando-o de que sua demanda responde apenas a táticas eleitorais. Mas hoje formam uma multidão os cidadãos de todas as ideologias e condições que não se apresentam a qualquer eleição e se manifestam preocupados com a incapacidade e a dificuldade de assumir responsabilidades por parte do presidente do Governo, disposto a responsabilizar os demais (juízes, promotores, policiais, Guarda Civil) por uma tarefa que primordialmente era dele. Ainda estamos esperando que passe por sua cabeça enviar um requerimento formal (não só declarações à mídia) ao presidente da Generalitat, determinando que cesse sua atividade sediciosa e enfrente o problema político que tem de verdade diante de si: não é nem era a eventual realização de uma consulta popular suspensa pelo Tribunal Constitucional, mas a incitação a uma declaração unilateral de independência por parte de quem paradoxalmente é o mais alto representante do Estado na comunidade autônoma da Catalunha. E que em sua louca corrida para frente não hesitou em promover um movimento em tudo semelhante a uma insurreição, com o apoio passivo de um corpo armado como o dos Mossos.
A atuação da polícia autonômica da Catalunha é especialmente grave. Se os Mossos, como lhes foi ordenado, tivessem impedido de antemão a abertura de colégios eleitorais e retirado urnas e cédulas, esta tarefa não teria de ser realizada depois pela Polícia e pela Guarda Civil e teríamos evitado muitas das cenas lamentáveis que ontem deram a volta ao mundo. Evidentemente, este último era o objetivo prioritário da Generalitat, que não hesitou para isso em situar os Mossos em seu próprio terreno de rebeldia. Não queremos que isso seja interpretado como uma justificativa antecipada da conduta do resto das forças de ordem do Estado espanhol. Sua atuação aconteceu, sem dúvida, dentro da lei, e como é próprio de um Estado de direito, na medida em que tenham se cometido excessos, se tenha aplicado a força de forma desproporcional ou empregado equipamento não autorizado, suas ações serão submetidas ao escrutínio dos tribunais e, se for o caso, sancionadas.
Houve desde o início mais atores nessa crise. Haverá tempo para debater sobre a aliança espúria entre os interesses do capitalismo protecionista da burguesia catalã com os objetivos do anticapitalismo niilista e tantas vezes violento que a CUP representa. Tempo também para lamentar a ambiguidade e escassa presença do PSOE nesse processo, cujas origens se situam em algumas decisões fracas do presidente José Luis Rodríguez Zapatero. Hoje é preciso saber como o Governo legitimamente eleito pelos espanhóis vai continuar enfrentando esse desafio descomunal. Estes têm direito a que Rajoy se explique sem necessidade de repetir o que já sabemos, que é preciso garantir o império da lei, porque isso é tão óbvio como cada amanhecer. De nada vale que o Governo se lamente de que lhe obrigaram a fazer o que não queria. O que o presidente tem de esclarecer, se for capaz, é o que quer realmente e o que está disposto a fazer para que este país e suas dezessete autonomias tenham um projeto de futuro, com democracia e convivência pacífica.
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