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Como o Brasil se tornou irrelevante na mediação da crise na Venezuela

País de Nicolás Maduro passa de 100 dias de protestos nas ruas enquanto segue isolado. Drama de Caracas expõe deserto diplomático na América Latina depois de ciclo pró-ativo

Manifestantes lembram dos 100 dias de protestos na Venezuela.
Manifestantes lembram dos 100 dias de protestos na Venezuela.Fernando Llano (AP)
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"Queremos contribuir para que a Venezuela  encontre em paz um caminho e que o povo venezuelano seja feliz". A frase é do ex-presidente Lula, então em seu primeiro mês de seu primeiro ano de mandato, em janeiro de 2003. Naquela época, o Brasil liderava a criação de um grupo de países amigos da Venezuela para ajudar a Organização dos Estados Americanos (OEA) a buscar uma saída para a grave crise que afetava o país. Um ano antes, ainda sob o presidente tucano Fernando Henrique Cardoso, Brasília puxou um movimento no chamado Grupo do Rio para condenar a tentativa de golpe de Estado que tirou Hugo Chávez brevemente do poder e isolar a gestão George W. Bush, que apoiara a rebelião. Chávez telefonou para agradecer FHC, feliz de o bolivariano ter voltado ao cargo. Agora, 14 anos depois, discute-se novamente um diálogo com Caracas por meio de países vizinhos. Mas, diferentemente daquela época, o Brasil hoje passa longe de liderar esta conversa.

Com uma conjuntura política bastante diferente, tanto no Brasil quanto na Venezuela e em toda a América Latina, Caracas vive um estado de convulsão política em meio a um deserto diplomático. A situação se aproxima de mais um capítulo tenso. A oposição venezuelana, nas ruas há mais de 100 dias em jornadas de protestos que já contabilizam mais de 90 mortos, realizou um referendo simbólico neste domingo que resultou na rejeição de uma nova Assembleia Nacional Constituinte, proposta por Maduro. Por não ter valor legal, a oposição espera que o plebiscito sirva como uma espécie de ultimato para o presidente, que marcou para o próximo dia 30 a eleição dos novos deputados constituintes. Além de redigir uma nova Carta, que segundo Maduro é essencial para ajustar o país à nova situação, os novos nomes eleitos vão substituir um Parlamento dominado pela oposição e tirá-la de vez do jogo. A campanha pela Constituinte dividiu ainda mais chavistas que já estão rachados. 

A iminência da eleição da Constituinte voltou a tentar mover o xadrez de declarações e intenções, na falta de iniciativas mais articuladas no hemisfério a respeito da crise. O Brasil lançou uma nota nesta segunda, condenando a iniciativa de Maduro, alentando a consulta popular da oposição e apoiando "uma negociação efetiva a favor da paz e da democracia na Venezuela". Já o Governo Donald Trump ameaça com sanções. Se por um lado a conduta dura de Washington pode ser comemorada pela oposição que vê Maduro imparável, por outro deve certamente alimentar a retórica chavista radical de que é preciso lutar contra o intervencionismo externo, especialmente o norte-americano. A próxima reunião da cúpula do Mercosul, que ocorrerá a partir de sexta-feira na Argentina, tem na pauta a suspensão da Venezuela do bloco - algo que já está em vigor desde dezembro. Todos os olhos se voltam, no entanto, para a Colômbia, que toma a iniciativa de tentar liderar um diálogo. O presidente Juan Manuel Santos, munido do Nobel que ganhou por negociar o fim do conflito colombiano, embarcou neste domingo para Cuba para tentar convencer Raúl Castro a apoiar o início de uma conversa regional com Caracas. Segundo o jornal Financial Times, a ideia teria o apoio do México e da Argentina.

De fato, segundo uma fonte diplomática, ouvida por EL PAÍS, a Colômbia, assim como Uruguai, Chile e o Equador, seriam os melhores países para liderar esta conversa. "O fato de termos um Governo sem legitimidade democrática direta até 2018 dificulta um eventual protagonismo brasileiro em um novo grupo de amigos", disse, desde sua embaixada. "Outros países, dentre eles a Colômbia, teriam de estar na linha de frente neste momento". E o presidente colombiano vem acenando neste sentido: na semana passada, Santos somou-se aos apelos da oposição e pediu que Maduro cancelasse a Constituinte para facilitar o diálogo.

Já o Brasil, além de viver uma crise política que enfraquece a musculatura que poderia ser despendida para a política externa, não tem a postura mais neutra para liderar esta conversa agora. É o que defende Carolina Silva Pedroso, pesquisadora da Universidade do Sul da Flórida e especialista em Venezuela. "Aloysio [Nunes, ministro das Relações Exteriores] é muito interessado no tema, mas, por outro lado, é um interesse muito ideologizado", diz. "E o que a Venezuela menos precisa agora é de alguém escolhendo um lado". A pesquisadora diz que Fernando Henrique Cardoso e Lula mantinham conversas com oposição e Governo em Caracas e esse fator foi crucial para que a liderança da criação do grupo funcionasse. "Além disso, agora, o timing para a criação de um novo grupo já passou".

Flávio da Silva Mendes, pesquisador do departamento de sociologia da Unicamp, também defende que a mudança do Governo brasileiro, após o impeachment de Dilma Rousseff, contribuiu para o isolamento de Caracas. "Se ainda fosse a Dilma ou o PT [na presidência], seria outra relação, que não era de apoio direto, era mais neutra", diz ele, que também é autor do livro Hugo Chávez em seu labirinto: O movimento bolivariano e a política na Venezuela (Alameda). "A mudança do Governo no Brasil contribuiu muito para o isolamento da Venezuela".

A relação próxima entre os dois países foi fruto de uma certa conveniência econômica, defende Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e colunista do EL PAÍS. "Na época da criação dos amigos da Venezuela, Chávez era um dos melhores clientes das empresas brasileiras. Por isso fazia sentido toda aquela parceria", diz. "Mas isso enviou um sinal à oposição de que o Governo brasileiro estava totalmente alinhado com o venezuelano". Ele também defende a neutralidade para as negociações agora. "O mediador ideal neste momento deve ter influência tanto na oposição quanto no Governo, e o Brasil não tem condições de influenciar nesta situação agora".

O caminho, para Stuenkel, seria então via OEA. "Está muito evidente que o governo chavista tem pouco interesse em negociar", diz. E o Brasil, por outro lado, "perdeu a janela de oportunidade que tinha [de negociar] quando estava um pouco melhor". No final do mês passado, a OEA, cujo secretário geral, Luis Almagro, é uma espécie de diplomata ativista e vem criticando a falta de rumo de Nicolás Maduro, bem que tentou. Um grupo de países liderado pelo México tentou negociar a inclusão de uma declaração crítica ao Governo de Maduro. Para isso, eram necessários 24 votos, algo que não ocorreu. Usando o petróleo como chantagem, a Venezuela conseguiu trazer alguns países para o seu lado.

Por isso, alguns especialistas ouvidos pelo EL PAÍS acreditam não só na impotência do Brasil diante desta crise, como acham que nenhum país seria capaz de ajudar a resolvê-la. Carolina Pedroso defende que a mediação deveria partir de dentro da Venezuela, e não de fora. "Talvez um grupo que possa trazer uma solução interessante seja o destes chavistas dissidentes, que defendem um projeto de inclusão social, mas não veem mais no Maduro esta iniciativa", diz. Flavio Mendes concorda. "A questão é de isolamento mesmo", diz. "E a principal saída será de dentro para fora". Analistas na Venezuela também defendem que uma aliança entre esse chavismo dissidente e ao menos parte da oposição seja algo digno de tentativa. Em quase 20 anos de chavismo, o grupo dominou várias áreas do poder, inclusive as estratégicas e até economicamente influentes Forças Armadas. Para esses observadores é difícil imaginar uma solução que não considere os militares no tabuleiro. Oliver Stuenkel resume: "A Venezuela está à deriva e a região não apresenta nenhum plano viável".

Impacto para o Brasil

Alguns defendem que o Brasil, especialmente sob o Governo Lula e Dilma, mais próximos de Caracas, já deveria ter adotado uma posição mais radical em relação à Venezuela. Para além das possíveis conveniências políticas, a possibilidade de ruptura em situações como a venezuelana engendra um impasse não só na América Latina e no Mercosul como em grupos mais consolidados como a União Europeia. O que fazer quando Governos não sofrem ou cometem golpes de Estado "clássicos", mas, de todo modo, vão dominando outros Poderes, corroendo o sistema de presos e contrapesos democráticos como foi acontecendo na Venezuela ou como alguns acreditam que começa a passar na Hungria? "No momento em que  foi detectado que o que ocorre lá não é mais uma democracia o Brasil deveria ter delineado algumas sanções comerciais pelo fato de a Venezuela não estar respeitando a cláusula democrática", diz Marcus Vinícius de Freitas, professor de Direito e Relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). Para ele, o Brasil assumiu uma posição conveniente em relação a Caracas: "Virou as costas [no sentido diplomático], mas continua mantendo suas relações comerciais". Por isso, segundo ele, a questão diplomática "já falhou". Para Freitas, o que o Brasil deveria fazer é ir atrás de um diálogo com a oposição e não mais com o Governo.

Forte importadora de carnes, açúcar, café e alimentos em geral, além de roupas do Brasil, e exportadora de petróleo e derivados, a Venezuela é um mercado importante para a economia brasileira. Com logística fácil, devido às fronteiras, a relação entre os dois países fluiu bem durante alguns anos. Ocorre que, com a crise do petróleo, Caracas foi se tornando uma má pagadora das dívidas. E o efeito dominó desta crise do petróleo é não somente econômico como também humanitário, com a explosão de imigrantes e pedidos de refúgio dos venezuelanos em diversos países, além do Brasil. "De uma maneira geral, qualquer país com instabilidade política no nosso entorno é ruim", diz Carolina Pedroso.

No ano passado, o Fundo Monetário Internacional (FMI) fez uma projeção de que a inflação na Venezuela ficaria em 2.200% no final deste ano e que a economia encolheria 7,4%. O derretimento do bolívar, a moeda venezuelana, se dá na mesma velocidade em que o valor do petróleo despenca. Tudo aponta que a instabilidade deve levar tempo para voltar à normalidade.

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