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Cinza é a nova cor do protesto em São Paulo

Morador apaga, com tinta cinza, grafite de seu muro no 'Beco do Batman' para chamar a atenção da Prefeitura

Muro da residência de João Batista, pintado de cinza por ele mesmo.
Muro da residência de João Batista, pintado de cinza por ele mesmo.

Um muro de uma residência em São Paulo foi pintado de cinza na tarde de segunda-feira. No dia seguinte, amanheceu pichado. Não fosse na Vila Madalena, mais precisamente no Beco do Batman, uma ruela conhecida pelos grafites espalhados pelas paredes externas das casas, o cinza até poderia ter passado batido. E o picho também. Mas não foi o que aconteceu.

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Ironicamente, o cinza grafite, a cor usada pelo prefeito João Doria (PSDB) para apagar dezenas de grafites e pichos pela cidade desde que iniciou sua gestão, foi a cor escolhida pelo aposentado João Batista Silva, 70, morador do local, para protestar pelo barulho que ele considera impertinente em sua zona. “Pintei para chamar a atenção da Prefeitura”, disse. Ele passou a tarde de segunda-feira junto com o filho pintando a casa, que, até então, recebia parte dos murais grafitados do local. “Não tenho nada contra os grafites”, explicou, na sequência. Na mesma noite, picharam o muro em protesto ao protesto.

Seu João vive há quase 70 anos na casa situada onde hoje é o Beco do Batman. Desde muito antes do lugar receber centenas – por vezes milhares – de turistas diariamente atrás dos murais que dão cor à ruela. A questão central, segundo o morador, é que as pessoas passaram a se reunir ali também durante a noite, depois que os bares do bairro fecham. O barulho, diz seu João, é o grande problema, e não os grafites. O muro cinza foi a forma que o morador encontrou de chamar a atenção da Prefeitura para essa questão.

A ação teve apoio de alguns artistas locais. Binho Ribeiro, autor de um dos murais que foram apagados por seu João, disse que a atitude do morador é legítima. "Mesmo que agressiva", diz. "Se ele tivesse me ligado antes, eu teria vindo aqui e ajudado ele a pintar o muro". Binho explica que o grafite é uma arte efêmera, não é feita para durar para sempre. "Eu não acho que o João me desrespeitou [apagando a arte]", diz. "O artista não pode achar que o muro é dele".

Independentemente da discussão, no dia seguinte à pintura do muro, o objetivo do seu João foi alcançado. Nesta terça-feira, logo pela manhã, Paulo Mathias, prefeito regional de Pinheiros, esteve no local para conversar com os moradores. “Tivemos uma conversa boa. Seu João disse, inclusive, que deixará fazerem um novo grafite lá”, disse Mathias, por telefone. “Para nós, o mais importante é não ter um muro pichado no Beco do Batman, que é um polo cultural mundial”.

Grafite x picho x mural

Grafite: arte normalmente feita de desenhos coloridos em muros e locais que podem ser autorizados ou não autorizados

Picho: escritos, com letras retas, feitos em muros e locais não autorizados. "A maior diferença entre o grafite e a pichação, palavras que os adeptos pretendem grafar com x, é a intenção de quem faz. Normalmente a pichação é feita mais pelo aspecto do vandalismo, do ataque à sociedade, e o grafite já é algo que busca conteúdo artístico, mesmo que que tenha questões de protesto", explica Binho Ribeiro.

Mural: arte feita nos locais autorizados pelos proprietários. "O mural é muito mais por onde se empenha, do que pela técnica", diz Ribeiro.

Sem entrar na questão do picho ou do grafite (leia mais ao lado), seu João pede que a Prefeitura controle, de alguma maneira, a presença de pessoas e do som alto durante a madrugada. “Este poste, instalado aqui há um ano, deixa o lugar iluminado a noite inteira, então as pessoas acabam ficando aqui”, disse, apontado para o poste que fica bem em frente à sua residência. O morador propõe que as luzes sejam apagadas às dez da noite. Mathias explica que essa é uma questão delicada. “Iluminação é uma questão de segurança. Estamos estudando o que fazer”, disse. “Talvez a gente readeque o ponto de iluminação para outro lugar, mas ainda estamos estudando”.

Conflito público

Seu João explica que a escolha da cor cinza Dória para seu protesto não foi proposital. "Eu ia passar um branco, mas aí disse para o vendedor que queria apagar uns grafites no meu muro e ele sugeriu esse cinza grafite". Coincidência ou não, essa é uma questão delicada para o novo prefeito. "O grafite está em quarto lugar na pauta da Prefeitura", diz Binho Ribeiro. "Em todo lugar que ele vai, ele é perguntado sobre isso".

Preocupado com a repercussão negativa dessa política em relação à arte urbana, Doria criou, em fevereiro, uma comissão de diálogo para discutir essa questão. "Não temos autonomia, mas damos assessoria em alguns casos", explica Binho Ribeiro, que faz parte da comissão. "Mas é importante dizer que esta e é a primeira vez que se monta uma comissão especial para tratar deste tema".

"O artista não pode achar que o muro é dele", Binho Ribeiro, grafiteiro

Os conflitos gerados em torno do espaço público estão no centro das questões administrativas de São Paulo há algum tempo. A gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT) também apagou grafites pela cidade e foi alvo de protestos. No final do ano passado, antes mesmo de assumir oficialmente a secretaria de Cultura, André Sturm, hoje à frente da pasta na gestão Doria, afirmou que a Virada Cultural - evento anual gratuito com extensa programação no centro da cidade - seria descentralizada e levada para bairros longe do centro. Enfrentou uma enxurrada de críticas e protestos e teve que se explicar na sequência.

Esses são apenas dois exemplos, mas toda mudança que envolve o espaço público tem gerado conflitos. Neste ano, o carnaval de rua virou uma espécie de evento de resistência às vontades da Prefeitura de limitar os bloquinhos pela cidade. Isso sem contar a briga pelo Parque Augusta ou dos Búfalos ou mesmo pela permanência do Minhocão e da avenida Paulista como vias fechadas ao trânsito aos finais de semana.

O arquiteto Guilherme Wisnik disse, em entrevista a este jornal, que o conflito é positivo e cabe ao poder público ser o mediador. "O grande atributo da esfera pública é mediar o conflito, porque a sociedade, em si, é conflituosa", disse. "A ideia de um espaço sem conflitos é ideológica, uma pacificação irreal. Quando um espaço público não tem conflito é porque ele não está cumprindo sua função".

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