Andriyan e Kalina: duas das vidas destroçadas pelo maior ataque terrorista da Espanha
Casal, que estava com casamento marcado para 15 de maio de 2004, morreu há exatos 13 anos
A vida do pedreiro Andriyan Asenov passou por uma reviravolta no final de 2003. Ele estava trabalhando em uma obra no bairro de Salamanca, bairro nobre de Madri, quando uma mulher o viu e o acusou de ter roubado sua bolsa alguns dias antes. Andriyan, de 21 anos, negou veementemente. Ele havia chegado a Madri em 2001, vindo de Lukovit (Bulgária), para procurar trabalho na Espanha. Um ano antes, seu pai tinha feito a mesma coisa, e, pouco depois, sua mãe. Os três dividiam, com outra família, um pequeno apartamento em Torrejón de Ardoz, um município vizinho da capital espanhola. Nenhuma das pessoas que conhecia Andriyan, um jovem alto e forte, considerado um trabalhador aplicado por seu chefe, suspeitava que ele tivesse roubado a tal bolsa. A mulher ligou para a polícia, que foi até o local para detê-lo. Ele ficou 17 dias preso, durante os quais foi submetido a duas sessões de reconhecimento. Na primeira, a vítima do roubo o identificou como autor; na segunda, a mulher reconheceu outro jovem. A polícia, então, o deixou em liberdade e Andriyan voltou para seu posto de trabalho. No entanto, tinha a obrigação de ir aos tribunais de Plaza de Castilla todos os meses, sempre no dia 11.
Kalina Dimitrova era nove anos mais velha que Andriyan. Depois de passar por vários empregos, ela finalmente conseguiu trabalho fixo no Hotel Meliá, onde limpava e arrumava os quartos. Os dois foram apresentados por uma amiga em comum e começaram a sair juntos. Kalina tinha um passado trágico, motivo pelo qual havia abandonado Yambol, a cidade búlgara em que nasceu: um mês depois de se casar, seu marido e seu irmão morreram em um acidente de trânsito. Meses depois, Kalina, ainda bastante jovem, deixou seu país para ir para a Espanha, e se mudou para Móstoles, outra cidade na zona metropolitana de Madri. Instalada em seu novo lar, ela encontrou o amor em Andriyan. Eles tinham, inclusive, data para se casar: 15 de maio de 2004. Mas, antes, ela já havia se mudado para o apartamento que Andriyan dividia com os seus pais e a outra família. Kalina passou os últimos dias de sua vida acertando os detalhes do banquete, da festa e do vestido de noiva. Na Bulgária, é tradição que a família do noivo o busque em sua casa e o leve até a casa da noiva, que o espera, já vestida, para ir à cerimônia de casamento. Mas, como viviam juntos, tiveram que usar a casa de amigos para poder cumprir o rito.
No dia 11 de março de 2004, Andriyan Asenov já tinha seu terno para o casamento, e Kalina ainda estava dando as últimas instruções à costureira que preparava o seu vestido. Todos os dias, o jovem ia trabalhar com o seu pai, também pedreiro, de ônibus. Mas, nos dias 11 de cada mês, Andriyan tinha que passar pelo tribunal de Plaza de Castilla e costumava fazê-lo depois de trabalhar. Na noite do dia 10 de março, entretanto, ele decidiu que faria o trajeto com Kalina no dia seguinte. Os dois iriam de trem e, depois de acompanhá-la ao Hotel Meliá Castilla, onde ela trabalhava, ele passaria pelos tribunais para assinar a folha de comparecimento. E só depois se dirigiria à obra em que trabalhava. Seu pai não insistiu para que ele mudasse de ideia, já que estava claro que Andriyan queria fazer o trajeto com a noiva. Pela manhã, uma amiga do casal os encontrou na plataforma, quando chegou o primeiro trem. "Vocês não vão entrar?", perguntou. O trem estava muito cheio, e Andriyan respondeu que esperariam pelo seguinte, que seria um veículo de dois andares e, assim, haveria mais espaço e poderiam viajar de forma mais confortável.
Às 7h40m da manhã (11h40m de Brasília), uma explosão deteve o trem em que o casal viajava. O maquinista Antonio Magro, desconcertado, olhou pelo espelho retrovisor e viu a plataforma cheia de fumaça. Nesse momento, ocorreu a segunda explosão, e ele viu os corpos de seus passageiros voarem pelos ares. "Estudantes, trabalhadores, muita gente jovem", contou oito dias depois da tragédia à jornalista Maite Neto, do EL PAÍS. "Vi restos pulverizados espalhados pela plataforma. Entrei em pânico, corria de um lado para o outro. Então, encontrei outros dois companheiros de trabalho que vinham chorando na minha direção, e nos abraçamos. Era um horror inimaginável". Nesse momento, começou o drama das famílias das vítimas do 11-M – o maior ataque terrorista da Espanha, no qual morreram 191 pessoas –, que ligavam para os celulares e eram atendidos diretamente pela caixa postal: "O número para o que você ligou está fora de área ou desligado". E, mesmo assim, insistiam, em alguns casos por vários dias seguidos.
Adrian Stefanov tem 22 anos e estuda direito em Madri. Andriyan era seu primo e seu padrinho, uma figura importante na Bulgária: o afilhado herda o sobrenome e, se os pais morrerem, o padrinho assume todas as responsabilidades. Adrián conta ao EL PAÍS suas recordações sobre o que aconteceu depois das explosões do 11-M: a família estava toda reunida esperando notícias, parte em uma casa em Lukovit (Bulgária), e outra em Torrejón (Madri), e não perdiam as esperanças. Sonia Metodieva, mãe de Andriyan, estava trabalhando quando o seu celular tocou, por volta das 8h (12h de Brasília) e uma amiga lhe contou sobre as bombas nos trens. As explosões haviam ocorrido nas estações de El Pozo, Santa Eugenia, Atocha… Madri havia se transformado em um inferno. Desde esse momento, ela, que estava em Torrejón, e seu marido, na capital, começaram a ligar interruptamente para Andriyan e Kalina. Mas nenhum deles atendia.
Cerca de 36 horas depois dos atentados, tempo que os pais de Andriyan levavam sem dormir, o chefe do jovem ligou para a família para avisar de que havia um rapaz não identificado em coma que parecia ser seu filho. Eles foram, então, ao hospital Gregorio Marañón: encontraram um jovem com o rosto totalmente desfigurado, as pernas queimadas e entubado. Sonia, a mãe, se atirou sobre ele: "É o meu filho, é o meu filho". "Assim que o vi, tive a sensação de que não era o meu menino, mas estava cega", reconhece Sonia. "Não importava quem eu encontrasse, ia ser meu filho de todas as maneiras". Seu sobrinho, Adrian, conta: "Na minha família não conseguimos esquecer esses dias porque meus tios continuam vivendo neles. Compraram uma casa com a indenização e a encheram de fotos dele. Andriyan está em todos os lados. Não falam de outra coisa que não seja ele, mesmo 13 anos depois. E, todos os dias, os dois vão juntos ao cemitério para limpar o túmulo e deixar flores".
Sonia Metodieva falou em búlgaro ao paciente que encontrou em coma, sussurrou e cantou. Começou a se render apenas quando se deu conta de que ele não estava usando o cordão de ouro com uma cruz que Andriyan nunca tirava do pescoço. Além disso, havia outra família na disputa pelo sobrevivente: Stefania era a noiva de Alin Stupuru, um menino romeno que viajava no mesmo trem. A história do reencontro de Stefania com seu Gordo, como o chamava de forma carinhosa, foi contada por Luz Sánchez-Mellado no EL PAÍS: quase desmaiou quando o viu. "Eu sabia que outra família o reivindicava", contou Stefanía, "mas não me importava. Alin era Alin". A ansiedade das duas famílias terminou quando a polícia assumiu o caso e identificou o paciente: o jovem em coma era Alin Stupuru. Quando descobriram a verdade, os pais de Andriyan tiveram que ser internados, e, horas depois, eles foram informados de que o corpo de Adriyan tinha aparecido no necrotério. Kalina também estava morta, e sua família viajou a Madri para enterrá-la.
Antes do funeral, a costureira terminou de fazer o vestido de casamento de Kalina, segundo as últimas orientações da noiva. Ela foi enterrada com seu vestido. E Andriyan com o terno que ia usar para se casar. Os dois foram sepultados e ‘casados' no cemitério de Torrejón de Ardoz, e seus corpos descansam juntos sob uma lápide que recorda que foram vítimas dos atentados de 11 de março.
Meses depois da morte de Andriyan, chegou à sua casa uma intimação pela denúncia do roubo da bolsa. Seus pais foram em seu lugar e informaram que Andriyan havia morrido nos atentados de Atocha, e que tinham certeza de que ele não tinha roubado a tal bolsa, e que a única prova era a acusação de uma mulher, presente na sala, que, além disso, não o havia identificado em uma das sessões de reconhecimento. O primo de Andriyan diz que seus tios ficaram mudos quando o julgamento foi suspenso e a mulher abandonou a sala sem dizer uma única palavra.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.