O atentado de 2004 na Espanha foi tramado em 2001 no Paquistão
Quando se completam dez anos dos ataques de 11 de março a Madri, revela-se que a ação criminosa começou a ser planejada no final de 2011, dois anos antes da guerra do Iraque
Os atentados de 11 de março de 2004 em Madri (11-M) foram idealizados em Karachi no final de 2001 como vingança pelo desmantelamento da célula que a Al Qaeda tinha estabelecido sete anos antes na Espanha, um grupo batizado de Abu Dahdah em alusão ao que foi seu líder desde 1995. A sede de vingança foi essencial na decisão de atacar na Espanha e no rápido início da mobilização – concretamente, a partir de março de 2002 – da rede que executaria o 11-M.
Isso é corroborado por uma série de fatos. Em primeiro lugar, o fato de que Amer Azizi, antigo membro da desarticulada célula de Abu Dahdah (que não foi detido por encontrar-se no Irã quando ocorreu a ação policial, chamada de Operação Dátil), tenha sido quem adotou originalmente a decisão de atacar na Espanha. Em segundo lugar, o de que outra pessoa ligada àquela organização, Mustafa Maymouni, tenha se ocupado de formar uma nova e decididamente operativa célula jihadista em Madri a partir dos restos daquela. Por último, o fato de que outros três seguidores de Abu Dahdah – Serhane Ben Abdelmajid Fakhet, o Tunisiano; Said Berraj e Jamal Zougam – tenham desempenhado papéis fundamentais na preparação e execução da matança nos trens de Cercanías.
Além disso, no caso do 11-M, não eram só Azizi e outros implicados originários da célula de Abu Dahdah que nutriam desejos de vingança contra a Espanha e os espanhóis. Esse era também o desejo de Allekema Lamari, que foi membro de uma célula do Grupo Islâmico Armado (GIA) desarticulada em Valência em 1997. Lamari, que cumpria condenação até sua extemporânea libertação em 2002, jurou que “os espanhóis pagariam muito caro por sua detenção”.
Lamari não ocultava seu “ressentimento com a Espanha” e declarava que, depois de sair da prisão, seu “único objetivo” era “levar a cabo em território nacional atentados terroristas de enormes dimensões, com o objetivo de causar o maior número possível de vítimas”, conforme se lê em distintos documentos do Centro Nacional de Inteligência (CNI) preparados antes e depois do 11-M. Em um deles se afirmava que, se não tivesse sido um dos mortos no atentado suicida ocorrido em Leganés em 3 de abril de 2004, estaria decidido a “continuar com sua vingança” contra “a população e os interesses espanhóis” com “a execução de novos ataques terroristas”.
Uns “mourozinhos do lava-pés”?
Mas os atentados nos trens madrilenhos de Cercanías se levaram a cabo não só com a participação de indivíduos previamente relacionados com a célula de Abu Dahdah e com os que eles atraíram. A rede terrorista do 11-M, que calculo ter estado composta na prática por mais de trinta pessoas, teve um segundo componente, introduzido a partir das estruturas europeias do Grupo Islâmico Combatente Marroquino (GICM), cujos dirigentes tinham optado em fevereiro de 2002 por reorientar suas operações, atendendo a critérios de oportunidade, para países onde residissem seus membros. Isso teve implicações diretas nos parâmetros de ameaça terrorista para Marrocos e Espanha. No verão de 2003 se somou à rede terrorista um terceiro componente: um grupo de delinquentes comuns radicalizados em maior ou menor medida no salafismo jihadista por lealdade a seu chefe, Jamal Ahmidan, o Chinês.
Lamari não ocultava seu “ressentimento com a Espanha”
Finalmente, os próprios líderes da Al Qaeda no Paquistão assumiram os planos terroristas em curso uns cinco ou seis meses antes do 11-M. Amer Azizi já se transformara em adjunto do chefe de operações externas dessa organização jihadista e a guerra do Iraque oferecia um contexto favorável para apresentá-los no marco de sua estratégia geral.
Apesar disso, nos anos que se seguiram ao 11-M ganhou espaço, tanto em âmbitos acadêmicos como entre as comunidades de inteligência e os meios de comunicação, a seguinte interpretação: os atentados de Madri foram produto de uma célula independente, sem conexões internacionais significativas com organizações terroristas estabelecidas longe das fronteiras espanholas, e aqueles que de um modo ou outro agiram para levá-los a cabo eram imigrantes muçulmanos radicalizados por conta própria no contexto da luta iraquiana em andamento na ocasião.
Por essa interpretação, tanto os implicados como sua rede, pejorativamente retratados na Espanha como “mourozinhos do lava-pés”, seriam expoentes do que se denominou “uma jihad sem líder”. Pois bem, a evidência que proporciono no livro ¡Matadlos! (“Matai-os!”) refuta amplamente essa interpretação do 11-M, tanto em relação às características dos participantes individuais e coletivos que estiveram por trás do ocorrido como ao verdadeiro motivo da decisão de atacar na Espanha. A matança nos trens madrilenhos de Cercanías foi, na verdade, uma expressão inicial e ao mesmo tempo complexa das capacidades com que poderia chegar a contar a Al Qaeda na Europa Ocidental dois anos e meio depois do 11 de Setembro.
Condições favoráveis
Mas, se os terroristas puderam cumprir sua vingança e levar a cabo a matança nos trens de Cercanías – apesar do conhecimento prévio que as Forças e Corpos de Segurança do Estado tinham de uma parcela substancial de quem pertenceu à rede do 11-M e até mesmo da vigilância à qual tinham sido submetidos alguns deles –, foi porque havia várias condições favoráveis. Para começar, os desajustes judiciais, o limitado conhecimento sobre o novo terrorismo internacional por parte do ministério público durante muito tempo e a inexistência de uma legislação adequada para abordar os desafios desse fenômeno global tornaram possível que distintos indivíduos vinculados a células e grupos jihadistas na Espanha, como a de Abu Dahdah, evitassem sua detenção ou condenação para acabar se envolvendo na preparação e execução dos atentados de Madri. E as disposições sobre delitos de terrorismo que contempla o Código Penal não se modificaram, para corresponder melhor às características e manifestações do atual terrorismo jihadista, até dezembro de 2010, mais de nove anos depois do 11 de Setembro e transcorridos quase sete do 11-M.
Por outro lado, os terroristas do 11 de Março mostraram uma grande habilidade, seguramente derivada da capacitação que alguns deles tinham obtido em campos de treinamento da Al Qaeda no Afeganistão, na hora de preservar a natureza de suas intenções. Por exemplo, comunicando-se entre si mediante um uso do correio eletrônico ou da telefonia móvel até então desconhecido não só para a polícia ou os serviços de inteligência espanhóis, mas também para outros europeus e ocidentais em geral. Em qualquer caso, uma coordenação – não digo excelente, mas à altura das autênticas necessidades – entre as seções correspondentes do Corpo Nacional de Polícia e da Guarda Civil dedicadas à luta contra o terrorismo jihadista, o tráfico de drogas e o comércio ilícito de substâncias explosivas muito provavelmente tivesse permitido cruzar dados, fazer soar os alarmes e desbaratar os preparativos para os atentados de Madri.
É chocante que, mesmo dois anos depois da matança nos trens de Cercanías, 16% dos muçulmanos residentes na Espanha manifestassem simpatia em relação aos atentados
Mas foi só em maio de 2004, dois meses depois do 11-M e transcorrido mais de um quarto de século desde que a democracia espanhola enfrentava o terrorismo de ETA, quando se tornou realidade o acesso conjunto e compartilhado – até então inexistente – às bases de dados policiais para ambos os corpos com competências antiterroristas em todo o território espanhol, quando se fundou o Centro Nacional de Coordenação Antiterrorista (CNCA).
Tampouco a cooperação intergovernamental em relação à ameaça do terrorismo internacional – embora tivessem ocorrido avanços desde os atentados do 11 de Setembro e fosse um campo ao qual as Forças e Corpos de Segurança do Estado vinham dando cuidadosa atenção, em especial no que se refere à Delegacia Geral de Informação (CGI) – contribuiu para impedir os atentados de Madri do modo como acabou permitindo, posteriormente, frustrar os planos para perpetrar um segundo 11-M no início de 2008 no metrô de Barcelona. Apesar de os envolvidos direta ou indiretamente nos atentados de Madri serem estrangeiros, residentes ou não na Espanha, sobretudo marroquinos, um bom número deles era conhecido pelas agências de segurança de seus países de origem – e alguns destacados integrantes da rede do 11-M chegaram a ser detidos ou investigados antes que se iniciasse sua formação, ou durante o processo, na França, Reino Unido, Marrocos ou Turquia.
Mas, do mesmo modo que uma Comissão Rogatória internacional dirigida às autoridades desse último país demorava excessivamente sua tramitação, o que possibilitou que Said Berraj não fosse detido por pertencer à célula de Abu Dahdah e se convertesse em um dos terroristas do 11-M, os serviços antiterroristas marroquinos não repassaram nenhum indício com base no qual se pudesse suspeitar do que estava sendo preparado na Espanha – apesar de terem detido em 2003 o iniciador da rede do 11-M, Mustafa Maymouni, e de as autoridades turcas terem entregado às de Rabat naquele mesmo ano Abdelatif Mourafik, que inicialmente lhe transmitiu, do Paquistão, as instruções de Amer Azizi.
Uma sociedade vulnerável
Seria um erro, em outro sentido, ignorar que boa parte dos indivíduos envolvidos na rede do 11-M eram também conhecidos, no seio da coletividade muçulmana residente em Madri, precisamente pelo extremismo de suas atitudes e crenças religiosas. Tampouco seria acertado ignorar o fato de que foram bastantes aqueles que, no seio dessa comunidade, comparecendo regularmente a lugares de culto islâmico e tendo contato com seus responsáveis, tiveram em algum momento razões para pensar que entre seus conhecidos ou amigos havia quem estava se preparando para cometer atentados, dentro ou fora da Espanha. A justificação que frequentemente se faz do terrorismo nesses âmbitos, dependendo de onde, contra que alvo ou com que propósito se execute um atentado, e a pretensão de que a lealdade baseada em pertencer a uma mesma religião esteja acima do respeito ao Estado de Direito e à convivência democrática, não são uma desculpa para não cumprir o dever de informar às autoridades do país em que vivem. É chocante que, mesmo dois anos depois da matança nos trens de Cercanías, 16% dos muçulmanos residentes na Espanha manifestassem simpatia em relação aos atentados contra civis em suposta defesa do Islã ou ao então líder da Al Qaeda, Osama bin Laden.
Diferentemente do que ocorreu no Reino Unido após os atentados suicidas de 7 de julho de 2005 em Londres, o 11-M dividiu os espanhóis. Dividiu até as vítimas da matança nos trens de Cercanías e seus familiares. Cabe associar essa realidade dilacerante a três fatores. Em primeiro lugar, à ausência de um mínimo de sensibilização coletiva prévia a respeito da ameaça que o terrorismo jihadista, além daquele da ETA, representava para a Espanha e os espanhóis desde meados dos anos 90; em segundo lugar, a uma cultura política propensa à polarização; em terceiro lugar, à ausência de consensos de Estado em setores fundamentais para as instituições representativas, a sociedade civil e o conjunto dos cidadãos, como a política externa, a política de defesa ou a própria política antiterrorista. Ainda há lições a ser tiradas das consequências dos atentados de Madri, a fim de edificar uma sociedade espanhola menos vulnerável e ao mesmo tempo mais consciente e resiliente ante desafios do atual terrorismo global que podem muito bem derivar, como no 11-M, da vingança.
Fernando Reinares é catedrático de Ciência Política e Estudos de Seguridade na Universidade Rey Juan Carlos, e pesquisador principal de Terrorismo Internacional no Real Instituto Elcano.
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