Oscar 2017: Da profundidade de ‘A Malvada’ à ligeireza de ‘La La Land’
As 14 indicações do filme de Mankiewicz representavam um cinema que hoje talvez seja irreproduzível, enquanto o musical de Chazelle é uma festa cinematográfica
Durante 47 anos, A Malvada (1950) foi inalcançável como o filme mais indicado a prêmios na história do Oscar. Suas 14 candidaturas representavam um cinema que hoje talvez seja irreproduzível: a solenidade dos grandes estúdios, a densidade intelectual no roteiro, a direção de Joseph L. Mankiewicz e um elenco delicioso, que sozinho rendeu cinco indicações.
Só em 1997 Titanic viria a igualar esse recorde. Deu baile nas bilheterias e nos prêmios, pois acabou empatando com Ben Hur (1959) em seu teto de 11 estatuetas. Mas, apesar do feito estatístico, as comparações qualitativas com A Malvada foram consideradas odiosas pelos puristas, mais interessados em salientar que foi o primeiro filme desde A Noviça Rebelde (1965) a receber o Oscar de melhor filme sem disputar o de roteiro.
Agora, 19 anos mais tarde, La La Land – Cantando Estações completa o trio de recordistas com uma aposta diferente, pois sua suposta ligeireza é seu trunfo e também seu calcanhar de Aquiles. Mas qual foi o contexto que favoreceu essa chuva de indicações?
“O Oscar não é o voto do país, nem é a bilheteria, nem uma análise social ou cultural. É Hollywood aplaudindo a si mesma, votando e premiando seus próprios feitos”, diz o professor de cinema Dana Polan, da Universidade de Nova York (NYU).
Para ele, mesmo A Malvada teve seu papel para uma indústria tão vaidosa. “Com a chegada da televisão, havia a necessidade de demonstrar a superioridade do cinema sobre outras artes. Hollywood investiu contra os palcos, com um retrato de intrigas e traições, e ao mesmo tempo demonstrou que podia escrever dramas tão bons ou melhores que o teatro”, diz.
A crítica do The New York Times, não por acaso, começava dizendo: “O velho e legítimo bom teatro, o templo de Tespis e da Arte, o mesmo que um dia atirou dardos envenenados contra Hollywood, pode se preparar para recebê-los de volta”.
O curador-chefe do Museu da Imagem em Movimento de Nova York, David Schwartz, considera que roteiros como os de A Malvada “agora se deslocaram para o cinema independente. Nesta edição estão aí Manchester à Beira-Mar e Moonlight”. Também recorda que A Malvada representava, também, a vitória de uma atriz, Bette Davis, depois de romper por via judicial o contrato com a Warner, que a manteve atada durante anos a roteiros medíocres. “Nos anos cinquenta, muitos atores começaram a criar suas próprias produtoras, como Burt Lancaster e James Cagney, e tentaram não depender de um estúdio”, conta Schwartz. E A Malvada era, portanto, um festim de atores para comemorar o princípio do fim desse sistema escravista para muitas estrelas.
Mas Polan observa que naquele mesmo ano, com as mesmas virtudes que o filme de Mankiewicz, Billy Wilder rodou O Crepúsculo dos Deuses, sátira sobre Hollywood que precisou se conformar com três Oscars, metade da colheita do longa análogo sobre os tablados, e provocou a ira do produtor Louis B. Mayer.
De lá até a chegada de Titanic, de James Cameron, muita coisa mudou, mas não houve década em que o gênero épico não impusesse o espírito bigger than life (maior que a vida) de Hollywood no Oscar. “O sucesso de Titanic representa duas questões simultaneamente. O enredo, o roteiro e a maneira de realizá-lo evocavam o jeito antigo de fazer melodramas. Mas teve também a tecnologia mais avançada. Era o primeiro triunfo da era digital, dois anos depois de John Lasseter fazer Toy Story”, diz o curador Schwartz.
Dos três filmes indicados a 14 prêmios, Titanic é o único a ser finalista em 14 categorias, pois A Malvada fez dobradinha nas indicações a melhor atriz (Bette Davis e Anne Baxter) e melhor atriz coadjuvante (Celeste Holm e Thelma Ritter), e La La Land no quesito melhor canção. “Hollywood gosta de filmes dos quais muita gente participa, em que todos os sindicatos estejam envolvidos. Titanic era épica, havia custado milhões, tinha efeitos especiais, era histórica, bem interpretada e com uma temática social vaga sobre a luta de classes. Tinha tudo”, afirma o professor Polan, embora recorde que até a vaidosa indústria cinematográfica ficou um pouco superada pela megalomania de Cameron e seu “Eu sou o rei do mundo” ao receber o Oscar.
E assim chegamos a La La Land, numa Hollywood “que enfrenta o desafio de levar as pessoas à sala de cinema em detrimento de outros suportes. Há algo neste filme que faz você querer vê-lo na tela grande e que recupera o programa de ir ao cinema num sábado à noite”, argumenta Schwartz.
Depois do resumo de Hollywood ilustrado por Mankiewicz e do delírio de grandeza de Cameron, o espírito informal e claramente millennial de Damien Chazelle, de 32 anos, sobe ao mesmo palco. Mas sua proposta não é de ruptura, segundo Schwartz, e sim algo irresistível para os acadêmicos. “É alguém que ama os velhos filmes, mas também é uma voz nova.” Michel Hazanavizius jogou a mesma cartada há seis anos com O Artista.
Polan insiste que “La La Land é um exemplo dessa Hollywood que foge da realidade e se autocelebra. É ambientada no presente, mas tudo nela tem o sabor dos momentos passados: a homenagem ao musical clássico, o carro antigo do protagonista, o jazz… Mas tem de atual, isso sim, o seu conceito de sucesso, que é mais empresarial do que artístico”. Schwartz acrescenta que parte do seu segredo está nessa viagem dicotômica entre o sentimental e o profissional, entre o retrospectivo e o presente, pois “isso torna o filme, apesar da nostalgia, emocionalmente moderno e realista”. Porque La La Land é, definitivamente, uma festa cinematográfica que acaricia e esbofeteia. Talvez, finalmente, uma mensagem ao mundo de uma Hollywood que se de alguma coisa entende é do tenebroso reverso do sucesso.
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