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Quando políticos dos EUA decidiram que o valor de pi era 3,2

Tentativa de mudar por decreto o valor da constante matemática aconteceu em Indiana, há 120 anos

Manuel Ansede
Escola no condado de Parke, em Indiana, 1898.
Escola no condado de Parke, em Indiana, 1898.G. Schrader
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No dia 21 de março de 2015, o jovem indiano Rajveer Meena começou a dizer números: "três, um, quatro, cinco, nove, dois...". E não parou durante quase 10 horas, diante de dezenas de testemunhas na Universidade VIT, em Velore, na Índia. Ele disse, de memória, os primeiros 70.000 dígitos do número pi, sem errar nenhuma vez, superando o recorde anterior de 67.890 números, conseguido uma década antes pelo chinês Chao Lu.

Meena, de 25 anos, poderia ter continuado eternamente. O número pi é infinito e irracional. Não tem qualquer padrão. Supostamente, qualquer número aparece na composição dos decimais de pi. A data de hoje, por exemplo, 12/2/2017, aparece pela primeira vez depois de 15 milhões de algarismos. Pi expressa o quociente entre o comprimento de uma circunferência e seu diâmetro, e tem um valor fixo de 3,1415926538979… Mas nem sempre foi assim para todos. Há 120 anos, em fevereiro de 1897, um grupo de políticos dos Estados Unidos decidiu que pi valia 3,2.

O presidente estadunidense Donald Trump defende, agora, sem nenhuma prova, barbaridades como a inexistência do aquecimento global, ou que as vacinas provocam autismo, mas o projeto de lei do estado de Indiana sobre o valor de pi foi uma das primeiras tentativas de estabelecer uma verdade científica por decreto.

A iniciativa foi impulsionada por um excêntrico médico, Edward Johnson Goodwin, que atendia no condado de Posey, no sudoeste de Indiana. Em 1888, Goodwin, um homem de 60 anos, alto e com bigode, proclamou que havia encontrado um método para "enquadrar" o círculo. Em seu modelo, o quociente entre o diâmetro e a circunferência equivalia a cinco quartos divididos por quatro. Fazendo as contas, pi era 3,2. Assunto encerrado.

Uma década mais tarde, Goodwin decidiu que sua descoberta era um presente para o país. Ele procurou Taylor I. Record, um fazendeiro que era representante do condado de Posey na Assembleia Geral de Indiana. E lhe apresentou um projeto de lei com "uma nova verdade matemática" que era "oferecida como uma contribuição à educação que só poderá ser utilizada pelo estado de Indiana de forma gratuita, sem necessidade de se pagar nenhum tipo de direitos autorais, sempre que seja aceita e adotada de forma oficial na legislatura de 1897".

Em 18 de janeiro de 1897, Record, quem também trabalhava como vendedor de madeira, apresentou o projeto na Assembleia. Goodwin, de acordo com a imprensa local, havia patenteado seu método em todos os EUA e em sete países europeus. Todos teriam de pagar pelas aplicações de seu suposto "enquadramento" do círculo, exceto o estado de Indiana. Em 5 de fevereiro, uma das câmaras da Assembleia, a dos Representantes, aprovou o projeto por unanimidade, com 67 votos a favor e nenhum contra. Mais de dois milênios antes, um matemático grego havia estabelecido o valor de pi como 3,14, mas vários políticos do meio-oeste dos Estados Unidos estavam dizendo que aquele tal de Arquimedes era uma farsa.

Os detalhes da história rocambolesca foram publicados em 1974, na revista Proceedings da Academia de Ciências de Indiana. O pesquisador matemático Arthur Hallenburg afirmou, então, que os detalhes que tinha descoberto tornavam "ainda mais estranha uma história que já é estranha".

Uma das história mais surreais foi a visita de Goodwin ao Observatório Astronômico Nacional, em Washington. Lá, o astrônomo Asaph Hall, célebre por ter descoberto as duas luas de Marte, ouviu que pi já não era mais 3,14, mas sim 3,2. Uma mudança que afetaria o cálculo das órbitas dos corpos celestes. "Sempre achei que a Terra viajava rápido demais em sua órbita", exclamou Hall, segundo publicou o diário Journal, de Indianápolis.

O projeto de lei do "enquadramento" do círculo só precisava a aprovação da outra câmara da Assembleia, o Senado. "Se eu viver mais 10 anos, guardem o meu nome. Minha descoberta revolucionará a matemática. Todos os astrônomos estavam errados", disse o médico, altivo, em uma entrevista ao jornal local Sun, no dia 6 de fevereiro.

O "enquadramento" não era o único assunto que chamava a atenção dos políticos da época. Um dos integrantes da câmara dos representantes, E. I. Patterson, também havia proposto uma lei para transformar em ilegal "a prática do futebol americano por qualquer pessoa no estado de Indiana", alegando que o esporte era "um risco para a vida", e que morriam mais praticantes que no boxe. A imprensa local organizava debates sobre os assuntos.

Em 5 de fevereiro, o matemático Clarence Abiathar Waldo viu um desses debates, quando visitava a assembleia para tentar conseguir um aumento no orçamento de sua universidade, a de Purdue. Um dos representantes dizia: "O caso é muito simples. Se aprovarmos este projeto de lei que estabelece um novo e correto valor para pi, o autor oferece a nosso estado sem nenhum custo o uso de sua descoberta e sua publicação gratuita nos livros de textos de nossas escolas, enquanto todos os demais terão de pagar direitos autorais".

O astrônomo William E. Edington descreveu, muitos anos depois, o estupo de Waldo, em um artigo de 1935, também publicado na revista da Academia de Ciências de Indiana. Quando a Câmara de Representantes aprovou o projeto do "enquadramento" do círculo por 67 a 0, um dos membros disse a Waldo que iria apresentar-lhe a Goodwin. Waldo, que era o chefe do departamento de Matemática da Universidade de Purdue, "negou de maneira cortês, afirmando que já conhecia loucos suficientes".

Waldo foi o herói que conseguiu que o número pi continuasse sendo 3.14159265358979… Naquela mesma tarde, ele falou com os senadores para explicar a eles que a proposta de Goodwin era uma loucura. Em 13 de fevereiro, o Indianapolis News publicou o relato da sessão: "A proposta para legalizar uma fórmula para enquadrar o círculo foi colocada sobre a mesa, e virou piada. Os senadores ironizaram, ridicularizaram, riram dela. A diversão durou meia hora". O projeto parou de forma indefinida. Goodwin não viveu mais 10 anos. Em 22 de junho de 1902, aos 77 anos, ele morreu. O jornal New Harmony News publicou um obituário com o título "Fim de um homem que queria beneficiar o mundo". O texto dizia que Goodwin, armado com seu pi de 3,2, estaria medindo a superfície dos céus.

O matemático Clarence Abiathar Waldo.
O matemático Clarence Abiathar Waldo.Universidad de Purdue
A "nova verdade matemática", de Edward J. Goodwin foi aprovada por 67 votos a zero em primeira votação
“Se eu viver mais 10 anos, guardem meu nome. Minha descoberta vai revolucionar a matemática", disse o médico cinco anos antes de morrer
O Senado de Indiana acabou ridicularizando o projeto de lei do "enquadrar" o círculo

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