As escadas são para subir e descer
Trump exige uma vigilância intensa e uma exaltação diária da razão como guia do pensamento
É possível que nos próximos dias muitas vozes se ergam pretendendo trivializar e suavizar a vitória de Donald Trump: os interesses norte-americanos deixam pouca margem para que um presidente modifique a política externa do país; os interesses financeiros não lhe permitirão mudar substancialmente a política econômica.
O curioso desta teoria é que pretende tranquilizar anunciando que somente pode haver grandes mudanças em “coisas menores”. Se não pode levar adiante as mudanças prometidas em política externa e economia, o que resta a Trump para se manter no poder? O já conhecido: acentuar seu viés mais extremista e reacionário em políticas “não decisivas”, como as políticas de ódio, o assédio aos muçulmanos, o cerco aos homossexuais, a demolição de políticas tolerantes e amáveis, como o sistema de saúde posto em pé por Obama... Calma, nos dizem, porque o novo presidente somente poderá tomar assento na Casa Branca conseguindo que cada vez mais norte-americanos fiquem obcecados com a grandeza, a identidade estadunidense, o ódio aos muçulmanos... coisas que, quando se pensa sobre isso, talvez não tenham tanta importância.
Na realidade, é isso precisamente o que nos deveria aterrorizar. Que nosso mundo cotidiano se encha de fatos inexplicáveis pelas leis da razão, que não existam motivações claras, razoáveis, para o comportamento dos cidadãos que nos rodeiam nem, dentro de pouco tempo, para nosso próprio comportamento. É assim, já sabemos que se chega à barbárie: escolhendo-a passo a passo. Com a eleição de Donald Trump se desceu um degrau a mais na direção do inferno (talvez dois, de uma vez), mas faz tempo que se abriu a cancela dessa escada. O que são, senão degraus para o inferno, as políticas europeias de imigração, capazes de abandonar à própria sorte dezenas de milhares de pessoas que não cometeram delito nenhum e às quais se impede de ter acesso à imigração por vias normais?
Muitos escritores europeus, romancistas, historiadores, poetas, nos explicaram no século passado que não há maneira de saber se o degrau que se acaba de descer será o degrau letal. A única coisa que se pode fazer é estar consciente de que sempre se tratou de decisões, não de catástrofes naturais, e que no que se refere a escolhas humanas é possível revertê-las, combatê-las, lutar contra elas e discuti-las. Pode-se subir ou descer as escadas. Tudo dependerá de como nós reagirmos e de como reagem os demais. Nos EUA e na Europa. Como reagem aqueles que ainda acreditam que o pensamento político deve ser regido pela razão e não por autenticidades indiscutíveis de tipo algum.
Não cabe esperar apático para comprovar, até que desçamos, o grau de toxicidade do porão
A razão necessita de diálogo, equilíbrio, dúvidas e capacidade para romper a cadeia causa/efeito que certamente funciona na natureza, mas que tanta dor provocou na humanidade. A razão valoriza o espaço público como um espaço em que se pode, e se deve, rebater e combater, e decidir continuamente entre opções, pequenas, cotidianas, rotineiras que distanciam ou aproximam a pessoa do precipício.
O que não cabe é manter-se à margem e esperar apático para comprovar, até que desçamos, o grau de toxicidade que tem o porão. Trump exige uma vigilância intensa e uma exaltação diária da razão como guia do pensamento. Sem vacilar nem fraquejar.
Talvez a UE não esteja no melhor momento para assumir esse papel, mas é tudo o que há. Talvez tivesse enfrentado melhor o perigo se não houvesse jogado fora, no início da crise, sua habilidade de criar vontades políticas comuns, em troca, exclusivamente, da hegemonia alemã. Agora Merkel e sua equipe vão ficar sozinhos demais, remendando um muro atrás do qual avança o inverno.
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