O maniqueísmo esportivo dos brasileiros inventou a vaia olímpica
As arquibancadas do Rio revelam que nossos torcedores não sabem encarar derrotas num país que tem o esporte como vingança mundial
Saber perder não é exatamente um esporte brasileiro. Parte disso está creditado a todo ouro e toda taça que foram celebrados como as únicas maneiras possíveis de o Brasil sobressair. Éramos vira-latas internacionais até Didi carregar a bola sob o braço direito depois de a seleção de futebol sofrer o primeiro gol da Suécia, na final da Copa do Mundo de 1958.
Desde então, o país elegeu o esporte como a nossa forra mundial. Perder não estava mais no roteiro. Nossa insignificância política parecia menor se comparada ao nosso êxito no futebol. Ninguém segurava a seleção.
Essa prepotência começou a se traduzir na arquibancada. A gana pelo o que um antigo chefe definiu como “o segundo esporte mais popular” do Brasil (ganhar medalhas) gera frustrações. O culpado, quando o time local estiver em campo, é o adversário. E tome vaias, mesmo que seja para um atleta machucado, como o tenista alemão Dustin Brown. Derrota consumada, o comportamento se volta para o brasileiro caído. O futebol brasileiro (Renato Augusto, sobretudo) que o diga.
Ontem, na Arena Carioca 1, no Rio, atletas brasileiros e lituanos viveram essas duas faces em uma partida da primeira fase do basquete masculino. Quando o jogo estava no início, reações da torcida báltica eram ruidosamente abafadas por vaias brasileiras. Até que a seleção europeia abriu 30 pontos de vantagem antes de o segundo quarto acabar — então, as reações negativas voltaram-se para os brasileiros. O time estava perdido em quadra, mas precisou se encontrar para que a torcida ajudasse novamente. O ufanista dirá que a seleção de basquete quase chegou a uma virada histórica porque a torcida abraçou o time, mas, de fato, foi Nenê Hilário, campeão de rebotes, e Leandrinho, o cestinha do jogo, quem a recolocou de volta no jogo.
A única medalha conquistada por um brasileiro até o domingo, a prata no tiro, foi polemizada pelo ouro, o vietnamita Xuan Vinh Hoang. O público “de futebol” o desconcentrou. Há relatos de quem estava no local de que a “virada” do brasileiro, classificado em 18º na primeira eliminatória, foi obtida graças à loucura de quem esteve presente. De fato, é preciso considerar que tiro não é um esporte popular no Brasil. Assistir a uma competição como essa exige que códigos de comportamento sejam assimilados, e não é o caso de quem comprou um ingresso para algo estranho ao nosso histórico esportivo (mesmo que alguém aponte, do outro lado da tela, que nossa primeira medalha olímpica veio do esporte, em 1920).
Todo país tem a sua maneira de torcer, mas não lembro de algum que tome a vaia como algo seu. Como construímos esse jeito? Há palpites, mas nenhuma certeza. Rivalidades foram criadas em campos, quadras, pistas e tablados. Por anos, as cubanas eram nossas rivais no vôlei. Criamos traumas contra italianos, franceses e argentinos no futebol, muitas vezes carregados em tintas nas coberturas da imprensa local. No caso da Argentina, as competições no país vizinhos traziam relatos de que fomos maltratados. Sim, já fomos (nos Sul-Americanos de futebol, por exemplo), mas estão mais restritos às primeiras décadas do século passado que a torneios recentes. Sugira um brasileiro que tenha sido vaiado no Pan de Mar del Plata, em 1995. Não há.
No fundo, somos maniqueístas ao extremo, e sempre é preciso eleger vilões. A Argentina tornou-se este ser místico que não foi poupado de vaias nem mesmo na mais olímpica das apresentações, a Abertura dos Jogos. Ontem, na Arena Olímpica, uma torcedora solitária com uma bandeira alviceleste nas mãos viu seu grito por uma das atletas que competia nas quatro modalidades de ginástica artística ser abafado também por vaias — até que alguém, sabe-se de lá de onde, mas dotado de sensatez, começou a incentivá-la a gritar por seu país, mesmo com tantos “rivais” ao lado.
A vaia parece uma saudade inexplicável de algo distante. Seriam os festivais e as “torcidas” de músicas concorrentes com raciocínios ilógicos? De vilões e mocinhos do telecatch, a popular luta livre? Arrisco a segunda hipótese. Nos ringues das lutas de mentira, havia bons e maus bem definidos tal um roteiro de novela de Silvio de Abreu. Nas quadras do Rio e nos campos de futebol do Brasil, a torcida decidiu nestes Jogos que somos todos um bando de Teddy Boys Marinos lutando contra uma renca de Aquiles, Rasputins Barba Vermelha e Múmias. E a Olimpíada não é isso.
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