Os filhos do vento
Os Jogos são de uma simplicidade esmagadora e, apesar do estrondo mundial gerado, é um espetáculo íntimo
A única pasta que conservo da infância é uma que mostra Ben Johnson vencendo Carl Lewis, o Filho do Vento, em uma corrida histórica. O canadense Johnson, esculpido em músculos enormes, levanta o braço antes de atingir a meta, enquanto atrás dele Lewis o observa, abatido como um cervo. Era Seul 1988, e Johnson já havia mostrado sua força um ano antes, no Campeonato Mundial de Roma, batendo o recorde mundial que voltaria a superar na Coreia.
Lá estava, naquela imagem, o homem mais rápido do mundo. Em outras estaria o mais forte, o que voa mais alto, o que salta mais longe, o que nada mais rápido. Os Jogos são de uma simplicidade esmagadora; por isso, seu espetáculo, apesar do estrondo planetário gerado, é um espetáculo íntimo, às vezes de alguns segundos. E, sempre, antes de um silêncio que estremece.
Os Jogos antigos, cuja origem é cheia de lendas que remetem a Zeus, alimentam o ritual sagrado com o qual o maior evento esportivo do planeta se apresenta a cada quatro anos. Nos modernos, com o amadorismo já liquidado, sobrevive um território não corrompido pelos interesses das grandes marcas comerciais: o dos heróis anônimos que encontram nos Jogos o foco que os projeta para o resto do planeta. São capas de veículos de comunicação que nem sequer informam como foram parar nos Jogos. São recepcionados em aeroportos com eventos dignos de uma contratação de um jogador de futebol. São homenageados em vilas e cidades. São convenientemente esquecidos nos quatro anos seguintes, às vezes até por suas próprias federações, caso finalmente retornem aos Jogos; se não voltarem, podem ser esquecidos por quatro mil anos.
É nessa intempérie que a maioria dos atletas que participam dos Jogos Olímpicos se move. Se as carreiras dos atletas duram 10 ou 15 anos, na melhor das hipóteses, os Jogos mostram que muitas delas duram o mesmo tempo levado para lançar o martelo aos olhos de seus países. Além disso, o que começa a se resolver no Rio de Janeiro são inúmeras contas pessoais. Começando pelo país e pela própria cidade, centro recorrente de uma violência embalsamada com o turismo, até países que têm no quadro de medalhas dos Jogos um termômetro adequado de sua marca no esporte mundial.
O que se inaugura no Rio não é apenas a grande concentração geoestratégica de nosso tempo, cenário de vetos que tinham correspondência em um cenário pré-guerra (Berlim, Moscou, Los Angeles), terrorista (Munique) e de atos simbólicos que tornaram a humanidade melhor (Jesse Owens, Tommi Smith, John Carlos), mas também o lugar e o tempo escolhidos por homens e mulheres para superar seus limites. Para competir não apenas contra semelhantes, e sim para saber o quão longe se pode chegar, mais alto e mais forte.
Aquela pasta do colégio, com Ben Johnson levantando um braço hercúleo que depois se mostraria artificial (um braço dopado), tem o valor do que perdemos, a inocência, e do que ganhamos, uma certa elegância moral. A admiração de um menino, que é sempre uma admiração sem doping.
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