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Cinco histórias da Europa para reavivar a sua fé na União Europeia

Engenheiros de meio continente projetam a odisseia espacial; milhares de caminhões cruzam as fronteiras; há comércio, paz, justiça

Em Granada fica a universidade com mais Erasmus; a um passo de Frankfurt, engenheiros de meio continente projetam a odisseia espacial; milhares de caminhões cruzam as fronteiras diariamente; há comércio, paz, justiça. Este é um retrato da face mais positiva da União Europeia.

Mikhail, caminhoneiro romeno, descansa perto da fronteira entre França e Alemanha
Mikhail, caminhoneiro romeno, descansa perto da fronteira entre França e AlemanhaCARLOS SPOTTORNO

1. Os Erasmus

Oito inquilinos da Casa Tiña, palacete no Albaicín no qual convivem 17 erasmus de 11 nacionalidades diferentes
Oito inquilinos da Casa Tiña, palacete no Albaicín no qual convivem 17 erasmus de 11 nacionalidades diferentesCarlos Spottorno

Se a União Europeia (UE) pretende avançar, e continuar em pé, deve olhar para a Casa Tiña. É um palacete do século XVII no alto do Albaicín, com um belo pátio central, em cuja mesa costumam se reunir para comer, estudar, bater papo e passar o tempo os 17 estudantes de 11 nacionalidades diferentes da UE que moram nele. Os tiñosos, é como se referem a eles mesmos. O local parece um experimento sociológico da Comissão Europeia. Mas é uma raridade para ser alugada, com inscrições em latim e vigas que revelam sua história. O destino, nas mãos do programa Erasmus, quis juntar esses garotos sob o mesmo teto dentro da UE. Como se suas paredes exercessem uma força de atração sobrenatural, uma gravitação europeísta. Num sábado de calor, enquanto Leo Pinheiro (luso-alemão) dedilha os acordes de uma canção cubana no violão, Elisabetta Borto­lotto (italiana) pergunta a Rebekah Lyndon (britânica):

"Como você vai votar?".

"Acho que para continuar na UE. Já temos disputas nacionalistas demais".

Ainda não tinha acontecido o Brexit. E da cozinha, em cuja geladeira brilha um adesivo de Refugees Welcome (refugiados são bem-vindos), vem o cheiro doce de macarrão recém-cozido.

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A de Granada é a universidade com mais Erasmus da UE. Recebeu quase 2.000 este ano. Alguns vieram por acaso, “pondo um dedo no mapa”. Para outros não havia muita escolha: “Tinha que optar por Cork (Irlanda) ou Granada”. A maioria reconhece que o idioma influiu na decisão. O clima. O custo de vida. Lorca. Alhambra. Hoje fazem parte dos 3,5 milhões de europeus que participaram do programa desde 1987. Quase 30 anos fornecem um bocado de números: 26% dos Erasmus conheceram seus parceiros durante sua estada no estrangeiro; um milhão de crianças nasceram graças a esses relacionamentos. Segundo Wenceslao Martín, membro da vice-reitoria de internacionalização de Granada, “De todos os projetos de coesão social da Comissão, não há nenhum como este”. Há algo inefável, intangível, nessa viagem dos estudantes à maturidade. Intui-se pelo copo com 6 ou 7 escovas de dentes misturadas na pia do apartamento que Lisa-Marie Peysang (alemã) divide. Essa ideia de uma comunidade entrelaçada que não se sabe muito bem onde começa nem onde termina. Até que termine.

A conversa vai ficando animada na Faculdade de Tradução e Interpretação. Na discussão, sete alunos estrangeiros: “Se quisermos uma Europa unida, precisamos nos conhecer entre nós. É nossa responsabilidade”. “Organizamos jantares com pessoas de países diferentes. É bom para o futuro da Europa que nós jovens conversemos tranquilamente.” “É difícil encontrar um erasmus nacionalista.” “A liberdade, a ausência de fronteiras, a democracia, o Estado de bem-estar. É possível dizer que todos temos os mesmos valores.” “O que estamos vivendo não está garantido para sempre.” Julian Bourne, seu tutor, de origem britânica, concorda, orgulhoso de seus garotos. Algumas semanas depois acontece o Brexit. Seu país foi o primeiro a pular do barco. Por telefone, Bourne parece exausto: “Meu Deus! É o caos. E ninguém tem nem ideia do que vai acontecer!”.

Carlos Spottorno

2. O comércio

Os aspargos de Pedro Sillero crescem nas terras frescas e esponjosas da várzea de Granada sem que seja preciso regá-los, um pouco como o espírito Erasmus. Seu negócio não existiria sem a chuva. Nem sem a UE. Esses aspargos verdes são consumidos em 15 países da eurozona; quando precisou de mão de obra, voou para o Leste e contratou 120 romenas. Los Gallombares, a cooperativa que preside, começou a operar em 1995, com financiamento de Bruxelas (a sede da União Europeia). Em seu escritório, uma revista especializada mostra na primeira página um regador azul com um círculo de 12 estrelas na parte de trás. Dele não cai água, e sim subsídios da Política Agrícola Comum (PAC).

Granada é a grande horta espanhola de aspargos; a Espanha, a grande horta da Europa. As exportações hortifrutícolas do país atingiram 11,90 bilhões de euros (43 bilhões de reais) em 2015, e 93% disso ficou na UE. Sillero, de 52 anos, filho e neto de agricultores, diz: “não sou político, mas acho que a Europa deveria significar muito para todos; precisamos remar na mesma corrente. Quantos carros a Alemanha nos vende? É a mesma coisa. Porque também precisamos de dinheiro para comprá-los”. É evidente que há certo desequilíbrio nas trocas. E que esses desajustes regionais levaram a Europa para perto do abismo. Isso não impede que Los Gallombares colha 8.000 toneladas de aspargos verdes por ano e envie para a UE 80% de sua produção. É a maior produtora de aspargo do continente. E sua estreia ocorreu durante a tempestade na economia. No início eram 20 sócios, hoje são 700. Geram cerca de 3.000 empregos. “E se o ano for bom”, segundo Sillero, “sobra um troquinho”.

Pelo continente circulam 14 bilhões de toneladas de mercadorias por ano. E mais de 127.000 caminhões cruzam as fronteiras entre os países diariamente

Em seu escritório se ouve um ruído ensurdecedor. Logo abaixo, cem mulheres movem os dedos como que fazendo cócegas na verdura. Selecionam pelo tato o diâmetro dos aspargos. Separam-nos pelo tamanho. Colocam-nos no cortador. Prendem-nos em feixes. Cercadas por um anel suspenso pelo qual circulam dezenas de caixas vazias, as diaristas parecem fazer uma dança ritual. Pegam uma no ar. Enchem-na. E a etiquetam: “Cliente: Lidl, Alemanha”. Um trabalho duro, monótono, mal remunerado. Por suas mãos passam 70 quilos de aspargos por minuto. É sexta-feira. E às 22h44, enquanto os erasmus já comem suas tapas (petiscos), 17 toneladas de aspargos partem rumo à Alemanha. Em 30 horas, e sem que o caminhão estacione por mais que o tempo para trocar de motorista, chegam a seu destino sem parar em nenhuma fronteira.

3. As fronteiras

Parque em Stuttgart
Parque em StuttgartCarlos Spottorno

Durante a crise dos refugiados e a onda de atentados islâmicos, oito países da UE suspenderam o tratado de Schengen no ano passado. A Comissão emitiu então um comunicado: o restabelecimento de controles de fronteira geraria custos de até 18 bilhões de euros (cerca de 65,34 bilhões de reais). E representaria um enorme freio ao comércio. Para a imensa maioria dos países da UE, a UE é seu principal parceiro comercial. E 75% destes intercâmbios são feitos pelas rodovias. Pelo continente circulam 14 bilhões de toneladas de mercadorias por ano. E, em um dia normal, mais de 127.000 caminhões cruzam as fronteiras entre os países.

“Espero que não nos esqueçamos disso”, diz um britânico no cemitério das Guerras Mundiais de Estrasburgo. “É muito fácil pensar que é algo remoto.”

É segunda-feira, e bem perto do Reno, em um posto de serviços em Baden-Wurtemberg, misturam-se placas de meia Europa. Por aqui passaram há algumas horas os aspargos granadinos com destino a Neustadt, ao norte de Stuttgart. De uma cabine azul assoma Mikhail, romeno de 28 anos, caminhoneiro desde os 18. Passa três meses seguidos viajando, descansa duas semanas, e volta para a boleia. Calça chinelos com a bandeira da Espanha, touro incluído. Pretende descansar as nove horas obrigatórias. Conhece 26 dos 28 países da UE. A Holanda é seu favorito: “Todos falam inglês e não são racistas”. Acaba de cruzar da França para a Alemanha. Mas vem da Espanha. Dali traz caixas vazias. E aqui carrega peças de motor e as leva para a fábrica da Seat em Martorell (Barcelona). De sua boca saem cobras e lagartos quando fala do Governo romeno. Preferiu buscar sua vida fora, assim como seu pai e seu irmão, que trabalham com limpeza em Cambridge. “E agora o Reino Unido quer sair da Europa”, lamenta. Em parte, pela rejeição a esses europeus que tiram brilho da sujeira inglesa. Mikhail também menciona os atentados islâmicos: “Como é possível matar assim, sem escrúpulos? No paço de fronteira de Mulhouse foram restabelecidos os controles. Tudo por culpa da Síria”. O lugar fica a alguns quilômetros. Ali não se veem retenções, mas a fileira de caminhões é grande. Primeiro alguns cones, então um estreitamento na pista. Um furgãozinho da polícia. Não parecem estar parando ninguém. Mas dá pavor pensar que tudo isso poderia voltar novamente.

Seguindo o curso do Reno, um pouco mais ao norte, uma ponte une França e Alemanha à altura de Estrasburgo. Foi feita em 2004. Simboliza a paz entre os dois países. E no centro estão pendurados centenas de cadeados com mensagens de amor adolescentes. A passarela faz parte do Jardim das Duas Margens, talvez o único do tipo: está em dois países ao mesmo tempo. Crianças de uma excursão escolar atravessam o rio, felizes. De um lado para o outro. Se alguém repete o trajeto com frequência, começa a perder a perspectiva e deixa de saber em que país está. Para tirar a dúvida, convém prestar atenção em um bunker solitário: fica do lado francês, exibe centenas de tiros e sua velha protuberância enferrujada foi coberta pelo mato. O lixo está atrás de uma cerca, mas é possível abrir a portinhola, e um letreiro indica que, a partir desse ponto, o lugar está reservado para que os cachorros defequem. Sobre o bunker, sobre séculos de guerras. Pode ser que não haja melhor símbolo de paz em todo o continente.

Mais há outros mais óbvios. Nos arredores de Estrasburgo, o britânico Peter Allen é nesta manhã o único visitante do cemitério das duas guerras mundiais. Dispostas em fileiras, estão lado a lado lápides francesas e alemãs. Em uma delas se lê: “Herman Arnold. Sargento. 1919-1944”. Parido ao terminar uma guerra. Morto na seguinte. Como se tivesse sido concebido apenas com fins bélicos. O inglês tem 52 anos, é professor de arte, casado com uma francesa e criaram dois filhos franco-britânicos em uma cidadezinha da Alemanha. “Essa é minha ideia de Europa”, diz. A mistura, a convivência, a ausência de barreiras. “Espero que não nos esqueçamos disso”, acrescenta ao lado dos túmulos. “É tão simples pensar que se trata de algo remoto.” Pouco depois, no dia que o Brexit ganhou, postou no Facebook: “Stupid Arsehole Brexiters!”. Algo como “estúpidos babacas partidários do Brexit”.

Sotgiu, um homem que mudou o direito da UE. Antonio, neto de Sotgiu, exibe uma tatuagem de seu avô
Sotgiu, um homem que mudou o direito da UE. Antonio, neto de Sotgiu, exibe uma tatuagem de seu avôCarlos Spottorno

4. A justiça

Enquanto a carga de aspargos bordeia a fronteira entre França e Alemanha, uma reunião animada acontece no centro cultural sardo de Stuttgart. Bebem vinho e contam velhas piadas. É sábado, quase meia-noite. A maioria são aposentados que deixaram a Itália nos anos sessenta, emigraram para a Alemanha e alimentaram com sua mão de obra as grandes fábricas de motores e automóveis. Nesta cidade está a Mercedes-Benz. Entre todos os sardos destaca-se um, Giovanni Maria Sotgiu, nascido em 1933, pastor na infância, poeta autodidata, um tipo “carismático”, “honesto”, “coerente”, “um verdadeiro comunista”, “para nós era como um ministro”, dizem seus companheiros de trabalho. Sotgiu trabalhou alguns anos na fábrica de motores Mahle, que hoje conta com mais de 60.000 funcionários. Em 1965 entrou no serviço de correios do Deutsche Bundespost. Viajava de caminhonete entregando encomendas. Nos anos setenta, começou uma batalha judicial contra a empresa pública para que os imigrantes europeus recebessem o mesmo salário que seus colegas alemães.

Sotgiu foi um homem que construiu a Europa do anonimato. Lutou por essa ideia de que a justiça está acima de estados e empresas

O caso Giovanni Maria Sotgiu versus Deutsche Bundespost chegou ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), que em 1974 emitiu uma dessas sentenças que determinam o antes e o depois. O assunto é estudado em faculdades de Direito. E o TJUE, ainda hoje, é usado com frequência em discussões sobre a equidade entre europeus: “As normas sobre igualdade de tratamento não só proíbem as discriminações ostensivas baseadas na nacionalidade, mas também qualquer forma encoberta de discriminação (sentencia Sotgiu, C-152/73, EU:C:1974:13, seção 11)”.

Sotgiu foi um desses homens que construíram a Europa do anonimato. Sua história representa, talvez, a melhor face do continente. Essa ideia de que a justiça e os direitos universais estão acima dos países, dos Governos, das empresas; de que uma briga individual pode melhorar a vida de 500 milhões de habitantes. O homem morreu ano passado, com Mal de Alzheimer. Deixou três filhas em Stuttgart. As duas mais novas nasceram na Alemanha, cursaram Universidade, hoje têm sobrenome alemão de casadas. A mais velha, Salvatorica, sofreu no colégio a segregação típica das crianças que chegaram à Alemanha sem conhecer a língua. Chegou aos cinco anos. E trabalha desde os 28, como seu pai, nos correios, distribuindo cartas em domicílio. Com frequência, as pessoas a param na rua para falar sobre como aquele sardo a ajudou nesta ou naquela ocasião. O filho de Salvatorica parece alemão. Com 19 anos, antes de ir para a universidade, quer passar um ano ajudando refugiados sírios. Levanta a camiseta e mostra uma tatuagem. Seu avô, ainda jovem, a cavalo. Diz: “Com ele aprendi a lutar pelo que se crê que é justo”.

José Morales, diretor da Agência Espacial Europeia
José Morales, diretor da Agência Espacial EuropeiaCarlos Spottorno

5. A ciência

Na sala de controle dos satélites Sentinel 1A e 1B toca a toda hora um alarme e todos, independentemente de sua origem (há gregos, alemães, ingleses, espanhóis, italianos...), olham uma tela na qual se indica que uma das cápsulas do programa Copernicus da Agência Espacial Europeia está a ponto de se conectar a uma estação em algum ponto da Terra. O satélite, que orbita a cerca de 623 quilômetros, começa a enviar dados a 520 megabytes por segundo. Imagens de radar. Os Sentinel se dedicam a mapear o planeta. De forma constante. Sem descanso. A cada 12 dias, retratam pelo menos um par de vezes cada palmo do globo. E suas fotografias estão à disposição de todo mundo. Livres, gratuitas. É uma das chaves do projeto. Uma raridade no espaço. “A open policy dos dados”, como a chama José María Morales, spacecraft operation manager do Sentinel-3A (já há quatro Sentinel no espaço). “Isto é o bom da Europa.”

O benefício de uma iniciativa open e free é única, uma aposta de longo prazo. Está nas mãos de universidades e empreendedores descobrir o potencial. Encontrar a utilidade das imagens, transformá-las em um produto com valor agregado. Nas palavras de Ramón Torres, project manager do Sentinel-1, “parece ficção científica. Mas acabará servindo ao agricultor de Granada, com a incipiente automatização do setor. Poderá controlar a umidade do terreno, a necessidade de nutrientes, a saúde da colheita”. Desde 2014, quando foi enviado ao espaço o primeiro satélite, 30.000 usuários descarregaram 5 petabytes de dados. E a Comissão Europeia, que é quem colocou em andamento o programa —e quem financia 65% dele—, já o usa para determinar limites, tipos de cultivos e o montante de ajudas da PAC; para resgates e emergências; para medir o degelo dos polos e o afundamento (a subsidência) de cidades; para regular o tráfego marítimo e medir o terrestre; para controlar as fronteiras e os riscos de incêndio, e calcular a cimentação dos edifícios.

Na sala, cuidam para que os satélites continuem girando. São como os engenheiros em boxes da Formula 1. Falam um inglês próprio, “estilo ESA”, com uma profusão de latinismos. Entre um alarme e outro, David Bibby, engenheiro inglês, responsável pela carga útil dos Sentinel, conta uma história de quando trabalhava na Airbus. Um dia um grupo de britânicos e outro de franceses foi encarregado de resolver um problema. Ambos ofereceram uma solução idêntica, mas o design era completamente diferente. Quando se puseram a trabalhar juntos, a solução comum superou as individuais de cada país. Para Bibby, este é o resumo da ESA: “A agência reúne o melhor da Europa; e essa união melhora a soma das partes”. Uma pena que a UE vá perdê-lo como cidadão.

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