Final triste e solitário
Prince foi um gênio musical, mas um gestor desastroso de sua carreira e, talvez, da própria vida
É difícil assimilar a morte de Prince e, mais ainda, o que percebo como indiferença em algumas reações. Suspeito que sua figura tenha se desbotado nos últimos vinte anos. Pelo menos na Espanha. Só um exemplo: a Rádio 3 interrompeu a programação na quinta-feira para dedicar a ele um especial que durou… 59 minutos! Depois de tratamento tão acanhado, continuaram com um ciclo sobre a história do calipso. Um detalhe curioso? Não: revelador.
Mas não precisamos apontar culpados. Se me permitem atuar como advogado do diabo: com estranha perversidade, Prince, ele mesmo, ajudou a acabar com sua carreira. Cercado de aduladores e empregados amedrontados, não se preocupou em manter sua visibilidade em um mercado saturado. Do ponto de vista econômico, é perfeitamente compreensível que tenha tirado sua música do YouTube e dos serviços gratuitos de streaming embora, por tabela, se afastasse do público mais jovem que poderia tê-lo descoberto naqueles vídeos transbordantes de dança e hedonismo.
Nos últimos dias, também se aplaudiu sua coragem de enfrentar as grandes gravadoras. Mas foi uma jogada míope, que o mandava para escanteio. Atiçava as multinacionais com a possibilidade de contratá-lo: cedia um disco, embolsava um vultoso adiantamento, e adeus. Não colaborava na promoção e o entusiasmo da companhia se desinflava.
Era mais malandro que inteligente. Procurava novos canais para seus lançamentos: dava Musicology a quem comprava ingressos para uma turnê, distribuía lançamentos (Planet Earth, 20ten) com jornais de grande tiragem. Dessa forma irritava as lojas e também as companhias que tinham pago um bom dinheiro para distribuir esses discos, que se desvalorizavam com a gratuidade.
Nunca entendeu que um artista do século XXI precisa potencializar seu legado mediante reedições remasterizadas ou ampliadas. Em 2014, quando fez as pazes com a Warner, anunciou que sairia uma versão deluxe de Purple Rain, para coincidir com os 30 anos de seu lançamento (1984). Não deu em nada.
Alguém dirá que queria evitar que os sucessos passados ofuscassem a música do presente. Na realidade, não tinha alma de disqueiro: também maltratou os títulos que editou por sua conta. Na sexta-feira, eu quis presentear One Nite Alone... Live!, uma extraordinária caixa contendo três CDs com gravações ao vivo lançada em 2002. Descubro que está fora de catálogo e se tornou peça de colecionadores: uma cópia usada chega a custar 475 euros – ou 1.900 reais – (e as novas, nem pensar: pedem 1.800 euros). Em minha ingenuidade, acreditava que a NPG Records era um selo das antigas: que mantinha todas as suas referências em estoque.
Os fãs alegarão que o verdadeiro Prince estava em seus shows. Fora dos Estados Unidos, também não aparecia muito. Em 2014, podia montar uma série de apresentações improvisadas na Inglaterra com 3rd Eye Girl: corriam rumores de que abriria o festival de Glastonbury. Era uma oportunidade extraordinária, mas voltou atrás, talvez pelo fato de que a BBC detinha os direitos de transmissão e, veja bem, qualquer um poderia vê-lo em ação.
Depois do atentado do Bataclan em Paris, cancelou o trecho europeu de sua turnê com piano. O medo é livre, mas os protegidos superastros não costumam ser afetados por atos terroristas. Menos ainda em seu caso: declarou ao The Guardian que se sentia cômodo nos países islâmicos; desculpava até a obrigatoriedade da burca. Vamos falar de religião. especula-se que a causa de sua morte tenha sido o abuso de Percocet, medicamento que tomava para aliviar suas dores. Tinham-lhe recomendado uma artoplastia de quadril; testemunha de Jeová convicto, recusou um procedimento cirúrgico que requeria transfusão de sangue.
Cada um constrói seu próprio inferno. Sua morte me lembrou as palavras de Philip Marlowe em O Perigoso Adeus (The Long Goodbye): “Até logo, amigo. Não te digo adeus. Já o disse quando tinha algum significado. Disse quando era triste, solitário e final”.
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