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A grande história secreta entre o rock e o comunismo

Stones em Cuba trouxe à tona fato pouco conhecido: a tenaz presença do rock em países comunistas

Diego A. Manrique
Um show dos Rolling Stones em Varsóvia, em 1967.
Um show dos Rolling Stones em Varsóvia, em 1967.Cezary Langda (PAP / CAF)
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As festas anuais do Partido Comunista da Espanha (PCE), no parque Casa de Campo, em Madri, figuravam na agenda dos mais obsessivos entre os fãs espanhóis de rock. Nos estandes instalados pelos “partidos irmãos”, às vezes, se vendia LPs a preços muito baixos. Havia música clássica em abundância, mas também estavam presentes produções de rock. E os encarregados daquelas lojas improvisadas colocavam em posição de destaque os discos de rock, como uma forma de dizer com orgulho: “estamos atualizados”.

Na verdade, não estavam tão atualizados assim. Enquanto isso, o jazz-rock polonês e o rock sinfônico húngaro evidenciavam sua defasagem, um atraso estético que se complicava pela pobreza da capa dos discos. Mas o conteúdo intrínseco daqueles vinis era de alto nível: músicos excelentes, gravações corretas, ambição criativa. E comunicavam a grande historia secreta: o rock estava aceso por trás da Cortina de Ferro.

Com grandes diferenças, é verdade. Na Bulgária, na Romênia e em Cuba os músicos e seus fãs de cabelo comprido eram reprimidos. Já na República Democrática Alemã, havia um esforço para desenvolver estrelas musicais equivalentes às da República Federal, uma política de Estado que se concretizou no movimento que foi chamado de Ostrock (rock do leste). A descentralizada Iugoslávia permitia a coexistência de potentes cenários musicais em sérvio, esloveno e croata. A Tchecoeslováquia, com sua base industrial, fornecia instrumentos musicais -incluindo sintetizadores- aos outros países do COMECON (Conselho para Assistência Econômica Mútua, criado em 1949 para integrar os países do Leste Europeu).

Enquanto isso, o jazz-rock polonês e rock sinfônico húngaro evidenciavam sua defasagem, um atraso estético

Em nenhuma dessas repúblicas soviéticas era possível expressar a dissidência política por meio de canções. Depois de que os tanques de guerra puseram fim à Primavera de Praga, em 1968, os artistas que simpatizavam com o “socialismo de rosto humano” do mandatário que encabeçou o movimento, Alexander Dubcek, foram perseguidos. Ainda assombra a perversidade das ações de repressão: para calar a popular cantora Marta Kubishova, falsificaram fotos pornográficas nas que ela aparecia, a pedido do diretor de sua companhia. Uma jogada digna da História Universal da Infâmia Discográfica.

O impulso paranoico que vinha de Moscou sempre era obedecido. Há registros de reuniões do Comitê Central da União Soviética (URSS) que discutiram a invasão do rock´n´roll em meados dos anos cinquenta. Foi decidido, naturalmente, que se tratava de uma jogada dos Estados Unidos, um plano concebido para corromper os jovens soviéticos.

E essa juventude se mostrou mais do que disposta a ser corrompida; inclusive, demonstraram engenhosidade tecnológica. Descobriram um novo suporte para difundir os discos que passavam pelas fronteiras: os roentgenizdat, conhecidos coloquialmente como “ossos” ou “costelas”. As gravações ocidentais eram copiadas sobre placas usadas de raios-X e eram vendidas por um rublo (a moeda russa).

Os roentgenizdat, conhecidos coloquialmente como “ossos” ou “costelas”, eram gravações ocidentais copiadas sobre placas usadas de raios-X

Mais irritante foi a paixão por produzir guitarras. Durante anos, em grandes cidades soviéticas, era difícil encontrar telefones públicos que funcionassem: seus microfones eram roubados, sistematicamente, para serem reciclados como pastilhas que se utilizavam para fazer os instrumentos de forma primitiva. No lugar das cordas se colocavam cabos metálicos. O som era meio horroroso, mas, tudo bem, o objetivo era fazer barulho.

Os burocratas podiam impedir os concertos desses esforçados aprendizes, embora isso significasse induzi-los à clandestinidade das atuações montadas em lugares afastados, onde tudo podia acontecer, inclusive, dançar o twist, uma assombrosa decadência. Em pleno delírio, se chegou a argumentar que o twist era um exemplo de onanismo bélico. Na República Democrática Alemã (RDA), tentaram combatê-lo com o lipsi, uma dança de salão baseada em ritmos caribenhos, que foi promovida até 1962, quando o presidente Walter Ulbricht, em um alarde de modernidade, se atreveu a fazer um twist.

O dilema das autoridades tinha uma difícil solução. As ondas “capitalistas” penetravam nos países que estavam na fronteira com o Ocidente, e era perfeitamente possível estar a par de todas as novidades pop. Asseguram que, nas profundezas da URSS, dependendo da eficácia das interferências, era possível escutar Rádio Liberty, BBC e Voice of America, que incluíam esse estilo musical proibido em meio aos espaços dedicados à transmissão de notícias.

O diagnóstico era claro: aquelas canções faziam apologia ao individualismo e à promiscuidade sexual (e, embora não soubessem, também às drogas, e misturas infernais de medicamentos e álcool). Com o tempo, desenvolveram uma estratégia de controle: transigiam com grupos e solistas que faziam pop e rock, enquadrados por organizações estatais e cuidadosamente vigiados pelas gravadoras oficiais. Em geral, eram dissuadidos de cantar em inglês, embora essa regra fosse esquecida quando se pretendia exportar figuras locais.

O diagnóstico era claro: aquelas músicas de rock faziam apologia ao individualismo e à promiscuidade

As leis da solidariedade obrigavam as nações comunistas a realizar um intercâmbio de grupos, principalmente nos Festivais da Juventude e em eventos dedicados à música de protesto. A fraternidade se estendia a artistas estrangeiros: convidado para se apresentar na RDA, o espanhol Víctor Manuel chegou a gravar um LP completo ali, Spanien, pelo selo Amiga. No entanto, as variedades mais fortes foram consideradas indigestas. Em 1967, os Rolling Stones fizeram dois shows em Varsóvia, na Polônia. Além dos problemas técnicos - devido às diferenças de voltagem, tiveram que tocar com a equipe do Czerwono-Czarni, uma banda da cidade polonesa de Gdansk –, na rua, houve enfrentamentos entre a Milícia Cidadã e algumas centenas de fãs que não conseguiram entradas. O experimento não prosperou; quando os Stones se ofereceram para tocar em Moscou, tiveram o pedido negado de uma forma grosseira. Na URSS, nem sequer se tolerava os Beatles: seus LPs foram lançados apenas em 1986, já em plena era Gorbachov, que era reconhecido como um admirador de John Lennon.

Para os departamentos de propaganda do Partido, foi uma bênção a chegada de Dean Reed, rebatizado, indevidamente, como “o Elvis vermelho”. Nascido em Denver (Colorado), Reed era um cantor de segunda categoria que se radicalizou, ideologicamente, durante suas estadias no Chile e na Argentina. Bonito e língua de trapo, chegou a enviar uma carta aberta ao escritor Alexander Solzhenitsyn, na qual o acusava de menosprezar os avanços sociais da “pátria do comunismo”.

Reed terminaria vivendo nesse Berlim, gravando em Praga e atuando por todo o bloco soviético. Gozava de prebendas insólitas e rodou filmes como El Cantor (1978), sobre o cantor e compositor assassinado Víctor Jara. Embora fosse considerado um desertor nos EUA, nunca renunciou ao passaporte americano e, anualmente, pagava ali seus impostos. Ele se suicidou em 1986. Uma morte estranha que alimentou teorias conspiratórias. Por sua extraordinária trajetória, Dean Reed é a personalidade mais estudada do pop do Pacto de Varsóvia: há livros, documentários e um plano de rodar um biopic, impulsionado por Tom Hanks.

Em pleno delírio, se chegou a argumentar que o twist era um exemplo de onanismo bélico

Além dessa tragédia humana, é vital o trabalho de gravadoras como a espanhola Vampi Soul, que está recuperando material da Supraphon, a companhia estatal da antiga Tchecoeslováquia, com recopilações de Marta Kubishova, The Matadors, Olympic, etc. À parte, Vampi Soul também publicou gravações do The Plastic People of the Universe, um grupo opositor por antonomásia. Sua condenação à prisão provocou uma manifestação em protesto ao ato na forma da chamada Carta 77, de Václav Havel e do mundo intelectual, considerada uma semente da futura Revolução de Veludo. Nessa época, o rock já era sinônimo da liberdade negada.

Ficam, entretanto, muitas histórias por explorar. Por exemplo, a daquele roqueiro chinês que pretendia matar Mao Tse Tung. Ling Liguo, conhecido como Tigre, filho do marechal Lin Biao, gozava de privilégios que permitiram que ele saboreasse o rock ocidental, que considerava um alimento espiritual. De dentro da cúpula das Forças Aéreas, preparou, em 1971, um golpe de estado, que foi detectado. O Tigre e sua família escaparam para a URSS, mas seu avião caiu na Mongólia. Sim, eu me encarrego: nem mesmo Hollywood aceitaria um roteiro tão improvável.

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