É hora da festa da firma
Precisamos falar sobre o Cunha? Prefiro não. Diante do iminente vômito, desisto. É hora de falar da festa da firma. Só o varejão da existência salva
Eu poderia começar assim: léxico é poder. Por exemplo: onde se lê reorganização, leia-se fechamento de escola. Vê como muda a vida. Por que repetir o release do Palácio (seja qual for) e escrever como o mandante quer?
Precisamos falar sobre o Eduardo Cunha? Prefiro não. Diante do iminente vômito, desisto.
É hora de falar da festa da firma. Só o varejão da existência salva. Acabei de chegar da minha primeira este ano. Como foi linda. Com karaokê e tudo. O sorriso da menina que cantou “Evidências” era um sorriso capaz de fazer funcionar mil lâmpadas no juízo final sem hidrelétricas.
“Quando eu digo que deixei de te amar/É porque eu te amo/Quando eu digo que não quero mais você/É porque eu te quero/Eu tenho medo de te dar meu coração/E confessar que eu estou em tuas mãos/Mas não posso imaginar/O que vai ser de mim/Se eu te perder um dia...”
Desde a minha primeira carteira assinada, na Mesbla, Recife, amo a festa da firma. O dia em que Dionísio dá as cartas, pensemos assim para tudo ficar mais bonito. O dia em que o office-boy bota um rabo de papel no poderoso chefão, a fantasia possível do baile. O dia em que o tímido rapaz do almoxarifado se engraça com a mina metida e pequena autoridade do RH –a mesma que um dia de crise pode cortá-lo. Corta.
A festa da firma desmantela a hierarquia por uma noite. Isso já é lindo. A ilusão na máquina moderna de moer gente. A festa da firma é uma piada de Zizek.
Melhor ainda: a ressaca moral da festa da firma. Você fez não uma merda qualquer com um amigo ou amiga de boteco. Você fez uma merda com a diretoria. Isso é lindo. Delito por bailar el chachachá. Só e tão-somente neste dia é possível e não passível de demissão. É ou não é um grande dia?
A classe operária jamais irá ao paraíso, todavia, na festa da firma, é o dia de fazer um chifrinho na foto por trás da cabeçorra do gerente. Panaca. A festa da firma não é luta de classes, afinal de contas ser babaca não é privilégio de quem manda. A festa da firma é apenas uma chance de tirar onda de baixo para cima.
Lembro da festa da Mesbla. Um altão brancão de sobrenome Paz, a quem agradeço, foi quem me deu o emprego em um Brasil de 30% de desempregados. Pense numa crise de fato! A sorte de ser um bom datilógrafo me rendeu o posto no departamento de crediário. Batia mil fichas por minuto. E não é que botei um rabo de papel no Paz, rapaz?! Só para me amostrar para uma moça no único dia que sai da minha matutice para lá de metafísica sertões adentro. Quem me deu esse poder? A festa da firma.
Amo festa de firma por essas e por outras. Agora reconto tudo de novo, afinal de contas ninguém nos ouve nesse mundo. Tudo é inédito na era da ansiedade da informação. Daí que eu repito, na autorreciclagem permanente do cronista, o que um dia falei sobre festa de firma.
Festa de firma. Tédio para uns, celebração dionisíaca para outros.
Fim de ano, aquela animação, aquele queijo coalhado no juízo, nervos à flor da pele, a vida assim meio Roberto Carlos, meio Almodóvar, meio Nelson Rodrigues, enfim, a vida simples, brega como ela é, a vida sem mistificação ou assepsia, a vida que não lava as mãos à toa.
Alguém querendo bater no chefe que o humilhou o ano inteiro, alguém querendo comer a gostosa do telemarketing.
O cenário certo, na graduação alcoólica certa, na boca-livre perfeita para um elemento cometer alguma desgraça ou crime de primeira página, seis colunas, manchete. Com direito a story-board.
Festa de firma. Pequenas histórias acumuladas o ano inteiro. Alguém sempre jurado de morte.
Tanto no terreno amoroso como na violência física de fato, tentando tirar na base da ignorância a mais-valia de uma vida inteira.
Melhor ainda: a ressaca moral da festa da firma. Só e tão-somente neste dia é possível e não passível de demissão. É ou não é um grande dia?
O acerto de contas.
Todo cuidado é pouco, caros bebedores amadores, com a festa da firma. Falo sério.
A melhor cena que vi foi numa farra do “Notícias Populares”, o glorioso e sanguinolento “NP”, de saudosa memória, que bateu as botas gutenberguianas como os presuntos que exibia em suas páginas.
Imaginem uma linda e desgostosa (com o marido canalha!) secretária.
Pensaram?
Terceira caipirinha. De alguma fruta exótica. Toda gostosa adora uma novidade.
Música, maestro.
Toca uma faixa capaz de fazer de uma madre superiora uma Madonna, capaz de fazer de qualquer entrevado um Elvis, um Elvis em Acapulco cantando na beira da piscina do Hilton Palace .
Toca algo assim como aquele “chabadabadá” da trilha de “Un Homme et Une Femme”, filme das antigas, “Um Homem, uma Mulher”, de Claude Lelouch, grande película.
Quarta caipirinha.
O chão é pouco para os passos da pecadora.
Ela sobe numa mesa.
Antes, beijara na boca, sem discriminação de classe, do diretor ao contínuo. Eu, um reles cronista folhetinesco daquele diário, também locupletei-me, claro, mas meio tímido, juro.
Quinta caipirinha.
A blusa não resistiu ao primeiro gole. O sutiã foi parar na cabeça do tiozionho do arquivo.
Sexta caipirinha acompanhada de uma cerveja mexicana: foi-se quase tudo. Belas saboneteiras, omoplatas geniais, observei.
Coube ao marido -a quem mais caberia?- enquadrar a “vadia”, como ele berrava sem economizar nas exclamações! Chegou para apanhá-la e acabou testemunhando o que não queria.
A festa acabou. E agora, José, fica ai o alerta: não há inocentes em uma festa de firma. Numa festa de firma, o mais tímido e sonso dos mortais dubla Carmem Miranda e passa a mão na bunda do chefe, só pra quebrar a hierarquia pelo seu ponto mais, digamos assim, inviolável e machista.
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “Os Machões Dançaram –crônicas de amor e sexo em tempos de homens vacilões” (editora Record), entre outros 15 livros.
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