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Miley Cyrus e a destruição total da inocência infantil

A cantora se transformou na estrela ingovernável do pop. Seu projeto mais recente: um clipe de tons pornográficos

Fernando Navarro
Miley Cyrus, no Video Music Awards em agosto. 
Miley Cyrus, no Video Music Awards em agosto. Getty Images

Parece roteiro da indústria de cinema pornô, mas é o projeto de um clipe: uma cantora de vinte e poucos anos nua e acompanhada por um grupo de quarentões, também pelados, derramando “em todo canto um líquido branco parecido com leite”, enquanto o público, também sem roupa, canta, grita e rodopia. Em qualquer filme pornográfico, o roteiro é o último elemento que gera comentários, mas neste caso é o primeiro. Tornou-se fundamental divulgar a trama escandalosa no estado em que se encontra sua protagonista: Miley Cyrus, antiga princesa infantil da Disney e atual rainha da nudez no Instagram e do twerking – baile com movimentos insinuantes e sensuais conhecido no Brasil como “dança da garrafa”.

A proposta surgiu a partir de um acordo de colaboração com Wayne Coyne, líder do grupo Flaming Lips, que revelou em seu perfil do Instagram o espetáculo que Cyrus planeja para a gravação do vídeo musical de Milky, Milky, Milk – a palavra leite triplicada –, um dos sucessos de seu novo álbum, Miley Cyrus & Her Dead Petz, que o próprio Coyne ajudou a gravar e produzir. Mas o que realmente vemos é o último estágio de provocação da jovem cantora norte-americana que adora mostrar a língua.

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Trata-se de algo que não conhecíamos, mas que agora está ainda mais claro: Miley Cyrus quer destruir tudo o que ficou, se é que ainda ficou, de Hannah Montana, a menina boa e inocente que protagonizou a bem-sucedida série adolescente do Disney Channel. Não é novidade: uma estrela infantil enterrando seu passado e mandado à merda os que a fabricaram. Vimos isto em vários momentos da história da cultura popular, da TV ao cinema, passando pela música com personagens emblemáticos como Michael Jackson, que mudou a cor da pele entre uma das tantas extravagâncias multimilionárias, e Britney Spears, que raspou o cabelo num ato de rebeldia após passar pela clínica de desintoxicação e perder a custódia dos dois filhos. Nesses casos, podem até ter sido pessoas famosas que caíram em desgraça. Mas Miley Cyrus, que aos 22 anos é dona de seus atos e sua carreira, definindo-se como uma “vagabunda”, é diferente. Seria mais um fetiche da cultura atual do espetáculo.

Houve um antes e um depois em sua carreira profissional. Foi na noite de gala dos prêmios MTV em 2013, quando a cantora chamou a atenção com o twerking, executando-o para a surpresa de milhões de espectadores. A internet explodiu naquele momento memorável para a cultura pop de nossos tempos, em que a artista superou Edward Snowden, o papa Francisco e a guerra na Síria no discurso informativo das redes sociais e veículos online. A elaborada e impressionante atuação de Lady Gaga ficou totalmente eclipsada pela provocadora aparição de Cyrus, que deixou de estar rodeada por ursinhos de pelúcia e coberta com um top infantil para bailar de calcinha e sutiã com o cantor Robin Thicke entre rebolados e caretas desafiantes. Como escreveu a colunista Sasha Weiss, da revista New Yorker, essa improvisação deliberada “alimentou o frenesi online”, fazendo com que o estímulo da resposta gerada tivesse mais interesse que o fato em si, e mandando uma mensagem a todos: “GIF me now”, que poderia ser traduzida como “faça imagens minhas com animações para a internet agora”.

Com seus vestidos mirabolantes, desenhados por grandes estilistas e que mostram mais carne do que tampam, Cyrus sempre aparece em imagens com animações assim, parafraseando Wayne Coyne com o líquido branco. E milhões de adolescentes assistem aos seus vídeos, gerando recordes de visualizações no YouTube. Foi assim com Wrecking Ball (mais de 800 milhões de reproduções), em que Cyrus aparece com um poderoso visual andrógino com tatuagens e nua, tampando convenientemente as partes delicadas segundo a lei. O material também pode ser visto por seus mais de 26 milhões de seguidores do Instagram, onde ela costuma compartilhar fotos em topless tanto em atitude sensual como de gozação, embora inserindo digitalmente ícones de animais para tampar seus seios e evitar a censura da rede social.

O apelo do corpo

F. N.

A exploração da sexualidade como alarde de poder no pop legitimou Madonna nos anos oitenta, causando grande alvoroço. Desde então, são muitas as estrelas que recorrem ao apelo do corpo: Beyoncé, Shakira, Rihanna, Britney Spears, Christina Aguilera... Mas nenhuma fez isto com o arrojo de Miley Cyrus, que foi objeto de estudo num curso da Universidade Skidmore, em Nova York. Faz tempo que ela atenta contra o politicamente correto. Após seu namoro com o filho de Arnold Schwarzenegger, reconheceu sua bissexualidade e foi pega beijando a modelo Stelle Maxwell. Mas é sua nudez que a coloca no olho do furacão. Ante a pergunta sobre o que seus pais pensavam a respeito dessa atitude, ela respondeu: “Meu pai prefere que eu mostre o peito e seja uma boa pessoa.”

É Miley Cyrus. Da imagem angelical de Hannah à ingovernável da estrela do pop. É a destruição total da inocência infantil e o triunfo da irreverência, mas vale ressaltar: num mundo midiático hiperestimulado, comercial e banal. Porque sua maior conquista até agora é ser para muitos tão atraente como a pornografia. Ela com certeza tem consciência disso: acaba de anunciar sua intenção de dar um concerto nudista.

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