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Retratos da morte num país sem guerra

Mostra fotográfica de André Liohn em SP retrata a violência brasileira em 60 imagens

Menino armado trabalha para o tráfico de drogas.
Menino armado trabalha para o tráfico de drogas.André Liohn

Uma pessoa certamente gabaritada para identificar uma guerra é aquela que viu com os próprios olhos as mazelas de uma – ou de várias. O fotógrafo paulista André Liohn não nasceu em um país em guerra, mas passou 10 anos cobrindo conflitos, especialmente no leste e no norte da África. Quando voltava para casa, depois de longos períodos na estrada, somava uma perturbação às tantas que trazia na mala: “O Brasil vive uma guerra velada”. “Será esse o problema?”, pensava. E assim passou a tratar de buscar respostas não com palavras, mas com imagens, que é o que sabe fazer.

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Desse questionamento surgiu o impulso para a mostra Revogo, que entra em cartaz na Caixa Cultural de São Paulo em 10 de outubro. Ela expõe 60 trabalhos de Liohn, o primeiro fotojornalista sul-americano a receber da indústria fotográfica, em 2012, o prêmio Robert Capa (um dos mais respeitados do setor) por seu registro da guerra civil da Líbia. Aqui, ele é responsável por fotografias da violência no Brasil feitas com a técnica da cobertura de guerra e que dispensam sangue para ser chocantes. Há um menino de 10 anos, encapuzado, que serve o tráfico de drogas com uma pistola na mão; uma mãe que usa crack diante da TV enquanto deixa o filho recém-nascido no sofá; corpos descobertos de jovens negros assassinados sendo carregados em um caminhão. Para chegar nessa seleção, Revogo contou com a curadoria do nova-iorquino Thomas Roma, grande nome da fotografia contemporânea.

Mãe deixa o bebê no sofá para consumir crack.
Mãe deixa o bebê no sofá para consumir crack.André Liohn

“O que a fotografia de guerra exige é estar perto, em termos físicos, emocionais e políticos também, a meu ver, do que se fotografa. No Brasil, fala-se de uma guerra encoberta, e eu decidi sair em busca dela, descobrir se realmente existe”, explica Liohn. Viajando pelas cidades brasileiras ranqueadas nos postos mais altos do Mapa da Violência, ele diz que o que encontrou foi uma “delinquência crônica” e bastante evidente. “Minha conclusão é que não estamos em guerra, e pensar assim nos afasta da realidade. No entanto, há familiaridades com ela, e a principal é a iminência de uma morte violenta, que pode acontecer a qualquer momento”. Viver sob pressão, opina o fotógrafo, faz com que os brasileiros tenham uma relação insegura com o futuro e seletiva com o passado. “Por isso, não falamos claramente sobre ditadura, escravidão, violência contra a mulher... Temos medo e não sabemos como resolver nada disso”.

Seus cliques retratam o presente, mas têm os ecos desse passado mal resolvido. Uma das imagens mais comentadas da exposição foi tirada em um concurso promovido em um baile de funk, na periferia carioca, por uma marca de cerveja que premiava “a garota mais devassa”. Na foto, uma mulher seminua, de pé em um palco, tem o corpo tocado por homens enquanto agacha. “Há quem possa argumentar que essa mulher é dona do próprio corpo e protagonista da própria vida. Então porque a mulher não pode decidir sobre o próprio corpo quando a questão é o aborto? O que vemos aí é alguém em busca de um prêmio que vai tirá-la do anonimato. Curioso que essa cerveja tenha entendido que a devassidão é um atributo no país, enquanto o que acontece é que temos que ser devassos para sair do nosso anonimato”, defende Liohn.

Marca de cerveja premia a mulher mais devassa em baile funk no Rio.
Marca de cerveja premia a mulher mais devassa em baile funk no Rio.André Liohn

Nascido em Botucatu, no interior de São Paulo, André Liohn começou a fotografar aos 30 anos e, hoje, aos 41, considera que circulou o suficiente por zonas em guerra. Diz que a mostra que agora entra em cartaz é, além de o mais pessoal, seu trabalho mais importante. “Comecei a fotografar conflitos levado por minha própria história de vida, de parentes e amigos que viveram e ainda vivem em comunidades carentes. Mas nada do que eu faço pretende falar do certo ou do errado, de otimismo ou pessimismo”. Não há, de sua parte, qualquer expectativa de gerar reações positivas ou negativas do público, ainda que ele ache que a maioria das pessoas vá se coibir. “Nem por isso, devo me inibir e deixar de expor o trabalho. Sendo um país sem guerra, pelo menos ainda temos as pessoas, os instrumentos e a intenção do diálogo. Precisamos cuidar que esse diálogo seja de qualidade”, acredita.

Revogo

De 10 de outubro a 6 de dezembro

Caixa Cultural de São Paulo

Entrada franca

Terça a domingo, das 9h às 19h

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