_
_
_
_
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

A (frágil) democracia na América

Década de bonança fomentou clientelismo para perpetuar Governos. Mas há esperança

Protesto na Cidade da Guatemala para pedir a renúncia do presidente Otto Pérez.
Protesto na Cidade da Guatemala para pedir a renúncia do presidente Otto Pérez.Johan Ordóñez (AFP)

A democracia decai. Há algum tempo isso é dito pelo Club de Madrid, Freedom House e o National Endowment for Democracy, entre outros. Ao final da terceira etapa, fomos testemunhas de uma paulatina “recessão democrática”, nas palavras de Larry Diamond. A prolongada crise econômica europeia, o ressurgimento dos nacionalismos e dos partidos xenófobos, o fracasso da primavera árabe e, por outro lado, a estabilidade alcançada por diversas autocracias falam de um clima global inóspito para a democracia.

Mais informações
Lula confirma seu retorno à arena política: “Voltei a voar outra vez”
Maduro fecha outro trecho da fronteira e pressiona a Colômbia
Com 51 mortos, El Salvador tem suas 24 horas mais letais
O degelo cria esperança nos novos empreendedores de Cuba

Na América Latina, entretanto, é mais do que isso. A narrativa dos anos oitenta foi marcada pelos direitos humanos e a transição. O argumento dos anos noventa foi sobre as democracias que delegavam, não liberais e híbridas, construções conceituais que enfatizavam a robustez dos processos eleitorais, apesar de seus déficits nas áreas de direitos da população e separação de poderes. Essa linguagem hoje é insuficiente: a noção de recessão democrática não descreve a regressão autoritária em curso.

Tal regressão não pode ser compreendida desconectada do efeito dos preços favoráveis da última década. Muitos governos democraticamente eleitos, com o boom das matérias primas, tiveram assegurados preços de venda históricos e recursos fiscais sem precedentes. Foram usados para aumentar a arbitrariedade do Executivo, financiar máquinas clientelistas de profunda imersão na estrutura social e estendidas no território e, desse modo, buscar a perpetuação no poder. É paradoxal que a prosperidade desse século tenha prejudicado mais as instituições democráticas do que a crise da dívida e a hiperinflação do século anterior. Isso convida a repensar a teoria.

O ponto fundamental dessa deterioração foi a reforma constitucional, um verdadeiro vírus latino-americano que não respeita fronteiras e ideologias. Foi feita pela esquerda, pela direita e pelos (mal denominados) populistas. Foi feita por todos, e todos com o objetivo de se manter no poder por mais tempo do que o estipulado ao chegar ao poder. De um mandato a dois, de dois a três e de três à reeleição indefinida. A regressão autoritária foi inevitável. Um presidencialismo sem alternância não pode ter outro destino a não ser adquirir traços despóticos.

A reforma per se não é o problema, e sim que a constituição se transforme em uma roupa feita sob medida para o presidente da vez, um conjunto de normas com seu sobrenome e escritas com sua caneta. A perda da neutralidade das regras do jogo dilui a noção de igualdade diante da lei e fragiliza a separação de poderes, o devido processo e as garantias individuais, princípios que dão sentido ao viver em democracia. Não é de surpreender, portanto, as subsequentes restrições à liberdade de imprensa e a intimidação a juízes e promotores independentes, práticas frequentes na região. É o menu completo da manipulação.

O desafio virá da população jovem, mais preparada do que seus pais, mas também mais desempregada

A democracia é um contrassenso na ausência do Estado de Direito. É difícil garantir justiça e proteger liberdades e direitos sem uma norma jurídica objetiva, neutra, impessoal e equitativa. Desnecessário falar da capacidade decrescente do Estado para monopolizar os meios de coerção, cuja imediata consequência foi a exacerbação do crime organizado e a corrupção, sintomas iguais da degradação institucional.

É quase o nascimento de um novo tipo de regime político. Nele, a corrupção é, justamente, o componente central da dominação. É muito mais do que o ato ilegal de ficar com o dinheiro público. A corrupção faz as vezes de partido político: seleciona políticos, organiza a disputa eleitoral e exerce a representação – e, sobretudo, o controle – territorial. Cristaliza desse modo a pós-democracia latino-americana.

O desafio do futuro é a mudança do ciclo econômico. A desaceleração produzirá um crescimento bem modesto nos próximos anos, e isso sem contar os sérios problemas macroeconômicos de alguns países; a Venezuela, Argentina e Brasil, em ordem de gravidade. A América Central terá desequilíbrios no setor externo pela diminuição do subsídio da Petrocaribe e a diminuição das exportações à Venezuela. O Caribe, que está muito endividado, sofrerá os aumentos da taxa de juros nos Estados Unidos.

As reformas constitucionais são um vírus latino-americano: Foram feitas por todos, esquerda e direita, para se manter no poder

As dificuldades econômicas colocarão pressão sobre o sistema político. Se, além disso, o poder das instituições democráticas estiver diluído, a volatilidade macroeconômica poderá acabar em uma intensificação do conflito social. As vozes mais ouvidas serão as das novas classes médias, 70 milhões de pessoas que deixaram a pobreza, mas que são especialmente vulneráveis diante de mudanças bruscas na economia e no emprego. O grande desafio virá da população jovem, mais preparada do que seus pais, mas também mais desempregada. Não é por acaso serem eles os mais desafiados pelo processo político. A frustração social poderá ser generalizada.

Ou talvez não e, pelo contrário, resida ali a grande oportunidade, a consequência não buscada (conceito criado pelo grande Albert Hirschman) do boom e do clientelismo redistributivo. Acontece que essas novas classes médias já não querem ser clientes, súditos, peças descartáveis da máquina de perpetuação. São cidadãos, pedem seus direitos, detestam a corrupção, querem qualidade institucional, têm voz e capacidade de ação coletiva, resistem à pós-democracia. É isso que se vê hoje nas ruas de São Paulo, Caracas, Quito, Cidade da Guatemala e San Miguel de Tucumán.

A América Latina continua sendo ela mesma: pouco Estado, um sistema político fragmentado, instituições inexistentes e uma enorme sociedade civil, cada vez mais atuante. Depois da onda bolivariana e de tanta perpetuação, é preciso voltar a funcionar. A boa notícia são os novos e bons ares democráticos do futuro que sopram nessas ruas latino-americanas.

Twitter: @hectorschamis.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_