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Coluna
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Quando o ‘chorume’ da internet invade a vida real

Comentários em letra maiúscula saltam das telas para os cartazes raivosos nos protestos. Defini-los como 'gatos pingados' é virar as costas para a nossa história recente

Manifestante pede a volta da ditadura durante protesto em São Paulo.
Manifestante pede a volta da ditadura durante protesto em São Paulo. André Tambucci (Fotos Públicas)

"DILMA, PENA Q NÃO TE ENFORCARAM NO DOI CODI”. “FORA COMUNISTAS, INTERVENÇÃO TEMPORÁRIA MILITAR JÁ”. “PORQUÊ (sic) NÃO MATARAM TODOS EM 1964”. Parece comentário raivoso que se vê aos montes pelas redes sociais. Mas não. Essas são frases reais, escritas em letras garrafais, que saltaram das telas para o 3D na última manifestação contra o Governo, no dia 16, causando choque e desconforto em grande parte de quem as viu. Ao flagrar cartazes como esses em protestos que reuniram milhares de pessoas pelo Brasil – e cujo foco, creio, era o repúdio à corrupção e à incompetência política, e não a defesa do ódio desmedido – me sinto um pouco como a versão 2002 de Regina Duarte (que, aliás, estava lá, demonstrando sua indignação do alto de uma árvore): eu tenho medo.

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Na internet, frases como essas flagradas por aí têm um apelido pouco carinhoso: chorume, justamente pelo estrago que fazem. Assim como aquele líquido de cheiro forte e aparência viscosa que sai dos lixões, esse chorume virtual também é tóxico. Cada observação como essas que ignoram 21 anos de graves violações aos direitos humanos, repressão, torturas, estupros e assassinatos cometidos por quem estava no poder, nos tira um pouquinho da fé na humanidade. Não aprendemos nada com a nossa história?

Sim, os que pedem a volta da ditadura militar (ou a intervenção militar temporária, como dizem) são, de fato, uma minoria. Nem as Forças Armadas engrossam abertamente esse coro. E não, não podemos generalizar todos os que foram às ruas no último domingo como sendo defensores dessa barbárie. Tampouco podemos usar cartazes como esse para ridicularizar – e, assim, não tentar compreender – o movimento que tem ganhado corpo em 2015. Mas nem nós, como imprensa, nem os organizadores dos protestos e a sociedade civil podemos ignorá-los. Eles estavam lá. EM CAIXA ALTA, como na internet. Sem filtro de spam. Sem alerta para conteúdo impróprio. Botando medo em quem assistia de casa a essas cenas. Assustando, inclusive, muitos que gostariam de sair para se manifestar, mas que não o fazem justamente para não serem cúmplices da ignorância, por não se sentirem representados por essa minoria radical.

Manifestação na avenida Paulista no dia 16 de agosto.
Manifestação na avenida Paulista no dia 16 de agosto.Patricia Monteiro (Bloomberg)

É legítimo e compreensível protestar. E, convenhamos, não faltam razões hoje pra isso – seja contra o Governo (e aqui incluo muitos estaduais), seja contra boa parte dos parlamentares. Mas é chocante ver, tão pouco tempo depois de reconquistada a nossa democracia, pessoas irem às ruas pedir a volta de um regime que, se de volta ao poder, jamais permitiria uma manifestação como essa, de insatisfação em relação ao governo.

É assustador haver registros de agressão física e verbal a quem, também no seu direito legítimo de discordar, foi às ruas de vermelho demarcar uma posição ideológica, tanto quanto fizeram os que vestiam verde-amarelo. É de causar repulsa que alguém tenha coragem de, para câmeras dispostas a filmá-los, peça a morte da presidenta. Defini-los apenas como gatos pingados no meio de uma multidão é virar as costas para a nossa biografia recente.

Um dos cartazes flagrados no protesto.
Um dos cartazes flagrados no protesto.Reprodução/Facebook

Dá até pra compreender o exercício do chorume livre na internet. As pessoas se sentem protegidas por uma falsa sensação de anonimato, e talvez creiam (erroneamente) que não fazem mal a ninguém. Mas quando a agressividade irresponsável sai das redes e invade o mundo real, quando a histeria comum no ambiente virtual ganha rosto nas ruas, é hora de ficar em alerta, de se preocupar. Seria melhor se esses gatos pingados continuassem apenas dançando o "fora Dilma" com passinhos engraçados. Ia dar vergonha, mas, pelo menos, não nos assustariam tanto.

Marina Novaes é jornalista no EL PAÍS Brasil.

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