De pisco e chalacas
Entre peruanos e chilenos, o 'Clássico do Pacífico' assume contornos alheios ao futebol
Poucas formas são mais comuns para tornar popular um litígio territorial ou um rancor histórico do que disputando a posse de algo. Já podemos pensar se as pupusas são salvadorenhas ou hondurenhas, se um inglês, e não um francês, inventou o champanhe, se o café turco se tornou grego em decorrência da invasão do Chipre em 1974, se Gardel era uruguaio ou argentino e, até mesmo, no genuíno criador do acrobático chute futebolístico de costas para o gol.
Ao que em inglês se chama de bicycle kick (chute de bicicleta), a grande rivalidade do Pacífico Sul tem sua própria resposta: chilena ou chalaca. O primeiro nome, de uso muito amplo no contexto hispânico, é em homenagem ao imigrante basco Ramón Unzaga, pioneiro nesse lance em Talcahuano, Chile. O segundo, é um gentílico da cidade peruana de Callao, onde também teria sido criado graças à agilidade de trabalhadores portuários de ascendência africana. Como não há muita vantagem escondida na denominação de origem do chute –não consigo imaginar governos pedindo direitos para o jogador que o execute ou à equipe que faça gol dessa maneira–, não há nada de mau em que cada qual diga o que lhe pareça melhor; assim, os italianos podem recorrer ao arovesciata e os alemães ao fallrückzieher –nos dois casos, algo assim como lançar-se de costas–, que nenhuma comissão internacional se envolverá no debate.
Disputa muito diferente de outra que separa os dois países cujas seleções se enfrentarão nas semifinais desta Copa América: a fabricação e venda da bebida pisco. Tratados, órgãos internacionais, votações, controvérsias, litígios –e continua existindo o pisco chileno como alternativa ao peruano.
Até agora eu me referi somente às discussões sobre a propriedade da tesoura futebolística e essa aguardente de uva, pois o tema se torna muito mais complexo se tentamos adentrar tudo o que faz com que em pleno 2015, e justo quando estão com a partida marcada para esta segunda-feira no Estádio Nacional de Santiago, a presidenta chilena, Michelle Bachelet, tenha suspendido uma reunião com seu colega peruano, Ollanta Humala.
É comum que as grandes rivalidades desportivas se nutram sociopoliticamente do passado. Entre peruanos e chilenos, o Clássico do Pacífico assume contornos também do presente que são alheios ao futebol: a emigração peruana para o Chile, as minas antipessoa na fronteira, o limite marítimo definido em Haia somente no ano passado, a saída da Bolívia para o mar, as guerras do século XIX, e mais o pisco.
Tomara que tudo fosse tão simples como reivindicar propriedade de uma acrobacia com a bola. Talvez, por isso, nós nos entretemos com isso enquanto os políticos se complicam.
Twitter: @albertolati
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