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Montevidéu, a bela adormecida

A capital uruguaia conta com um rico patrimônio, mas desperdiça seu potencial turístico e acumula décadas de abandono

O Palácio Salvo na Praça Independência.
O Palácio Salvo na Praça Independência.Robert Harding

Com suas fachadas enegrecidas pela poluição e suas avenidas bagunçadas, Montevidéu esconde um rico patrimônio abandonado. Isso confere uma beleza decadente à capital uruguaia. Está muito longe do esplendor com que várias ondas de imigrantes tentaram construir, a partir do século XIX; uma utópica capital europeia. Esta cidade concentra 1/3 da população uruguaia, 1,3 milhão de pessoas, e olha para o Rio da Prata, a baía escolhida em 1726 pelo rei da Espanha, Felipe V, para fundar um forte capaz de conter o avanço dos portugueses.

É possível dizer sem exagerar que Montevidéu é uma das poucas capitais do mundo que não possui um circuito turístico. É habitual ver visitantes perambulando desorientados pelos bairros históricos, atentos às surpresas que as ruas podem mostrar: edifícios modernistas, palácios franceses ou casonas coloniais. Todos com suas portas fechadas. Há poucos guias turísticos que resumem a oferta da cidade, as placas nas ruas quase não existem e os horários dos museus são um desafio à lógica. Estes podem abrir tarde ou não abrir, e permanecem fechados nos fins de semana.

Muitos visitantes podem ficar com a impressão de que Montevidéu é uma cidade com poucos atrativos. Um mal-entendido que, por enquanto, só os especialistas podem esclarecer. Entre eles se encontra a arquitetura Gabriela Pallares, que conhece cada fachada da 18 de Julio, a principal avenida montevideana que tanto lembra a Gran Vía de Madri no começo dos anos 80. Pallares é autora de um blog que teve enorme sucesso ao denunciar demolições de edifícios de interesse artístico e fazer propostas para melhorá-los. A arquiteta adverte que para apreciar a 18 de Julio é preciso olhar para cima, esquivando as marquises das lojas, o péssimo estado do mobiliário urbano, as bancas de rua, o lixo... então, aparecem as construções pomposas. Edifícios com uma mistura de estilos, alguns com uma expressão mais francesa, outros expressionistas ou que adquirem as influências do movimento art déco. “Aqui há uma cultura de que somente o moderno é bom. Todos acham que tudo que é novo é melhor que o antigo, e isso é um erro. As coisas podem melhorar sem grandes investimentos, basta uma boa iluminação, um pouco de sentido comum”, assegura Pallares.

Um homem passa na frente de um edifício abandonado em Montevidéu.
Um homem passa na frente de um edifício abandonado em Montevidéu.afp

A decadência de Montevidéu começou nos anos setenta, junto com a decadência econômica do país e da ditadura (1973-1984). Com a chegada da democracia surgiram outras dificuldades, como a magnitude do investimento para recuperar uma cidade tão grande como Paris, mas com apenas 20% da população da capital francesa. A prefeitura da cidade, nas mãos da esquerdista Frente Ampla, também é objeto de muitas críticas, já que a maior parte do orçamento municipal é gasta pagando os salários de funcionários.

Por tudo isto, os tesouros de Montevidéu estão abandonados, mas em muitos casos também intactos. A capital uruguaia vai se debilitando enquanto outras cidades latino-americanas como Lima ou Guayaquil se renovam, e outras como Santiago de Chile se entregam a uma euforia de modernidade e consumismo. Neste ano eleitoral, com as presidenciais previstas para outubro, nenhum candidato parece ter um plano para Montevidéu.

O emblema da cidade é o Palácio Salvio, uma espécie de arranha-céu situado na central Praça Independência, no final da avenida 18 de Julio. Tem um estilo gótico e foi desenhado pelo italiano Mario Palanti. A construção foi finalizada em 1928, cinco anos depois de seu início, e foi, por quase 10 anos, o edifício mais alto da América Latina. Agora, o Palácio Salvo está em um estado deplorável. Seus corredores são para visitantes audazes que se atrevem a se enfiar por onde ocorrem cenas dignas de um filme de David Lynch.

Durante o século XX, quando o Uruguai era um país rico e exportava suas matérias-primas - especialmente carne - para a Europa arruinada pela I Guerra Mundial, os milionários rivalizavam com suas ambiciosas construções. Muitos edifícios competiam com o Palácio Salvo, como o Palácio Lapido, inspirado no expressionismo alemão, ou o Palácio Díaz, outro arranha-céu levantado em 1930 por outro imigrante, o espanhol Pedro Díaz, político e comerciante conhecido por seu anticlericalismo e por pertencer à maçonaria.

O ex-prefeito e arquiteto Mariano Arana considera que o verdadeiro precursor da capital é o ex-presidente José Batlle y Ordóñez (1856-1929). Foi considerado o fundador do Uruguai moderno, um Estado social e laico. Este ex-mandatário “tentou criar uma Europa culta no novo continente porque estava convencido de que o Uruguai tinha um destino próprio”, assegura Arana.

A partir de 1910, Batlle y Ordóñez abriu concursos públicos para construir avenidas e edifícios estatais, fundou escolas de arte e contratou os melhores arquitetos estrangeiros, como o francês Joseph Marie Carré, autor de muitas obras montevideanas, entre as quais está o esplêndido Jockey Club. Neste edifício central e luxuoso se reuniam somente homens, essencialmente da aristocracia britânica residentes na cidade e grandes personagens como o cantor de tango Carlos Gardel. Muitos poucos tiveram o privilégio de ver o lugar por dentro, comprado há uns anos pela ridícula quantia de um milhão de dólares por um empresário que o mantém fechado.

Durante esses anos, a capital laica e moderno se levantou sobre a cidade colonial, e em algumas ocasiões as duas expressões se misturaram, como a Praça Matriz, situada no bairro histórico. Nesta esplanada está a Prefeitura e uma catedral de estilo colonial. O bairro histórico é a entrada natural dos turistas que chegam ao porto. Um lugar lúgubre e vazio à noite, mas que durante o dia oferece as melhores vistas para a baía, e dá a impressão de que estamos em Cádiz, imagem de nostalgia para os colonos andaluzes que povoaram a cidade.

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