Xavi: “O futebol é uma bola e alguns amigos”
Em sua última temporada no Barcelona, o meia catalão repassa seus 17 anos de carreira
Xavi Hernández (Terrassa, 35 anos) é reconhecido como o melhor jogador de futebol espanhol de todos os tempos. Talvez seja mesmo, embora apenas pelo fato de que ninguém ganhou mais títulos que ele. No sábado se despediu do Camp Nou, à espera do resultado da final da Copa do Rei e na véspera da Champions. Deixa o clube com humor: “Só me faltou um hat-trick”, diz. Antes, repassa ao EL PAÍS o seu legado numa casa cheia de caixas embaladas, porque está de mudança.
Pergunta. Dezessete anos no Barcelona. Para que serviram?
Resposta. Para desfrutar como um louco. E para sofrer. Porque agora me sinto muito feliz, estou muito orgulhoso do que consegui e de como estou. Mas também penei aqui. Houve dias difíceis, duros de verdade.
P. O que é o futebol?
R. Uma bola e alguns amigos. E opa! Um joguinho, uma rodinha, passando a bola, na praia ou no jardim de casa. Dando risadas. Isso é o futebol. Crianças passando a bola no pátio de um colégio. Isso é futebol.
P. E se o seu time ganha, isso é la hóstia [é o máximo], como diria Luis, não?
R. [Ri]. Luis Aragonês, grande sujeito! Lembro-me muito dele, sinto muita saudade.
P. Por que vai embora?
R. Porque chegou a hora. A cabeça me diz e o corpo me avisa. O coração, não. O coração é do Barça e ficará aqui.
P. Você escondeu no colégio que jogava no Barça. Por quê?
R. Não queria que me olhassem diferente. Eu sabia que não mudaria, mas tinha medo de que me dissessem ‘olha esse cara, entrou no Barça e agora se faz de espertinho”. Eu não usava nem o moletom do Barça pela rua para não chamar a atenção.
Vou porque a cabeça me diz e o corpo me avisa. O coração, não. O coração é do Barça e ficará aqui
P. Qual é a primeira imagem do vestiário do Barcelona?
R. Sentado, trocando de roupa, de um lado Figo, do outro Guardiola, e então chega o Núñez e começa a falar com o Pep. E eu do lado. Ficava sabendo de tudo, claro. Era um novato e estava ali, até me dava vergonha. Os veteranos foram muito legais comigo. Pep, Pitu, Luis, Sergi, Figo, Rivaldo, todos me trataram muito bem.
P. No sábado você conquistou sua oitava Liga. O time ganhou a primeira em Vitoria e você estava em Albacete.
R. Exato. Naquele ano disputei 18 jogos, mas na última rodada só os convocados foram a Vitoria, porque Van Gaal decidiu assim. E eu fui com a B a Albacete e vi a partida lá. Tem uma camiseta no museu de Angel Mur, que está no vestiário, feita por Anderson e Rivaldo, que diz: “Todos somos campeões”. E vemos os nomes de Ciric, Busquets, Okunowo, Roger e Oscar, que não viajaram. Mas estive na Praça de Sant Jaume. A última Liga foi realizada ali. Sou tão velho que estive em Sant Jaume!
P. O que seria de você sem Van Gaal?
R. Ele me ensinou muito. Sempre me dizia: “Você é melhor que Zidane”. E eu lhe respondia: “Puxa, não exagere, obrigado, mas não exagere”. Tive muita sorte, tive grandes treinadores. Fomos muito injustos com ele, era um grande técnico.
P. Depois, cinco anos sem ganhar. O que aconteceu?
R. Perdemos a essência. Mudamos de treinador toda hora, não encontramos estabilidade até que chegou o Rijkaard. E o Ronaldinho. Quando ganhamos, ganhamos com a posse de bola, atacando para nos defender, com a essência acima de tudo. A única solução que temos é ser quem somos. Se não respeitamos o estilo não tem sentido, isso está provado. Mas, algumas vezes, quando não ganhávamos, colocávamos tudo em dúvida e não valia nada. Aqui as pessoas logo procuram um sujeito de um metro e oitenta e muito forte. Mas não: o que precisamos é de jogadores que entendam a essência, o terceiro homem, o passe para criar superioridade.
P. Por isso você muitas vezes se sentiu em destaque?
Van Gaal me dizia: “Você é melhor que Zidane”
R. Sim. Quando ganhávamos me olhavam muito, me davam muita bola. Mas quando perdíamos, duvidavam de tudo – começando por mim.
P. Você sempre citou Busquets e Pedro como exemplos. Por quê?
R. Por sua humildade, por seu sacrifício, porque têm um talento excepcional e um compromisso enorme, mas não são muito reconhecidos e isso me deixa mal. Sei o quanto é difícil chegar até aqui e eles chegaram, ganharam tudo e sempre estiveram a serviço da equipe, como Jordi [Alba]. Sempre. Isso vale também para Andrés e Piqué, mas eles, assim como o Leo ou eu mesmo, tiveram mais elogios. Pedro e Sergio são dois jogadores enormes. A história de Pedro é excepcional: um atacante do Barcelona que se formou no clube e chegou aonde está merece que a gente olhe, aplauda e diga: “Ei, pessoal, vamos aprender com ele”. E Busi? Nunca vi um jogador mais inteligente em campo.
P. Ganhou uma Liga no intervalo de uma partida e outra no sofá de casa... estranho, não?
R. Sim, ganhamos uma em Balaídos no descanso, no ano em que sofri uma lesão. Para mim foi um dos anos mais difíceis, mas que me ensinou muito. Rompi os ligamentos cruzados num treino em dezembro. Acabei com meu joelho. Aprendi a me cuidar. Não entrava na academia, achava que bastaria tocar na bola. Não levantava peso, seria na base do talento. Naquele ano, com a ajuda de Emili [Ricart] e do doutor Cugat, cheguei a uma conclusão: ou me cuidava ou tudo acabaria cedo demais. Na outra partida, decidida por um gol de Capdevila contra o Madrid, estávamos todos em casa e comecei a dizer: “Ei, gente, temos que festejar isso.” E fomos nos divertir, embora jogássemos no dia seguinte no Manzanares.
P. Como o ano da conquista das três taças, não há outro igual?
R. Até agora foi o melhor ano da história. Por tudo o que envolveu. Pela maneira que desfrutamos, pela forma como ganhamos. Aquele ano foi de pura essência. Nunca se viu melhor futebol que aquele. Até hoje eu penso: é impossível jogar melhor. Ganhamos a Champions de uma maneira contundente. Os anos de Pep não se repetem.
P. Você sofreu por ele como companheiro e sofreu mais como treinador?
R. Não, eu curti! Como companheiro ele também sofria, não era culpa dele a comparação. Para mim foi uma pressão ser apontado como seu herdeiro. Ele me dizia que não desse importância, mas claro... Foi uma pressão crescer ao seu lado, mas não por sua culpa. Ele me tratou muito bem.
Para mim foi uma pressão ser apontado como herdeiro de Guardiola
P. É verdade que você esteve a ponto de deixar o Barcelona antes que ele fosse treinador?
R. Tive uma oferta do Bayern de Munique e estava disposto a aceitar, é verdade. E ele me disse: “Xavi, não consigo imaginar o time sem você. Impossível.” Respondi: “Tudo bem, eu fico”. Um treinador impressionante. Víamos as coisas da mesma forma, entendemos o jogo de maneira idêntica. Os astros conspiraram para aqueles anos do Pep! E tínhamos uma equipe extraordinária. Mas nada foi casual. Trabalhamos muito e fomos muito superiores. Tenho uma teoria: o Barça deve ser muito superior ao Madrid; do contrário, você não ganha. Eles se unem: a imprensa, o espírito de Juanito, o lance do “como não vou gostar de você”... Por isso, ou nós jogamos bem ou adeus. Com igualdade, eles conseguem coisas que nós não temos; aqui o dinamismo é negativo e lá, positivo.
P. Daria tudo para trabalhar com Johan Cruyff?
R. Puxa, é o que mais gostaria. É minha referência no futebol e não o tive, então imagina. Johan mudou a história do jogo, sem dúvida. Pelo menos no Barcelona.
P. De todas as Ligas, você só ganhou uma no Camp Nou.
R. E sem jogar! O Undiano me deu cartão amarelo na partida anterior. Fui ao seu vestiário e lhe disse: “Escuta, não te disse nada, nós jogamos a Liga em casa”. E ele me disse: “Você me aprontou uma confusão.”
P. A pior Liga foi a da doença do Tito?
R. Sim, essa e a seguinte, no ano da sua morte. A Liga do Tito tornou-se muito dolorosa. Era um cara superexigente. “Cem pontos, precisamos fazer cem pontos”, ele nos dizia. Mas foi um ano muito duro, havia um clima de pena constante no vestiário. Conseguimos seguir em frente graças ao nosso nível futebolístico e porque Aureli [Altimira] e Jordi [Roure] deram tudo. Deixavam uma mensagem de voz para nós, dizendo que Tito tinha feito isso, Tito tinha feito aquilo, Tito tinha ligado. Ele esteve muito presente. Eu sempre falava com ele. Um dia me deu um torra! Eu sentia dores, quis jogar e voltei a sentir no jogo contra o Milan. O próximo jogo era contra o Bayern, eu quis jogar e ele me disse: “Se tiver outra recaída, você não joga mais”. Um torra! Ele tinha uma personalidade muito forte.
P. E você, que sempre esteve no chamado ‘onze de gala’, como suportou não ser protagonista este ano?
Cruyff é minha referência no futebol e não o tive [como treinador], então imagina
R. É duro, claro. Mas aprendi com outros companheiros que não jogavam, ficavam em silêncio e não criavam problema. Um de meus exemplos sempre foi o goleiro reserva: não jogava nunca e festejava como o titular; de modo que pensei muito em Jorquera, em Pepe Reina, pessoas que trabalham como ninguém e não reclamam, quando sabemos que os jogadores costumam ser muito egoístas. Aprendi com eles. Olha, no Valencia me substituíram faltando 10 minutos e entrei no campo para festejar o gol do Busi. Abracei o Luis Enrique! Ele tinha me tirado e eu não estava com raiva. Mudei o chip e fiz o que me ensinaram quando criança: pensar no grupo. Queria terminar bem, com um título, e veja só. Outro dia eu comentava com Puyi, que não pôde jogar nem ganhar. E olha como me despedi do Camp Nou, incrível. Todas as peças do quebra-cabeça se encaixaram. Impressionante. Nunca teria imaginado um final como esse, de filme.
P. Por que ficou?
R. Senti boas vibrações. Acabou aquela tristeza que senti por perder a Liga como a perdemos, em casa e sem jogar; e também o lance do Mundial, que foi muito doloroso. E sabia que vinha Luis Suárez; falei com Luis Enrique e me disse: “Pelopo, pensa bem”. E a sensação foi: tudo vai dar certo. Eu disse aos colegas: “Pessoal, ficarei mais um ano porque acho que vai ser bom.” Luis foi muito legal comigo porque não me enganou. E isso é importante. Honrado e de frente. Eu podia guardar rancor por ele não me fazer jogar muito, mas, ao contrário, devo uma a ele porque foi um dos que mais fizeram para que eu ficasse. Eu me entusiasmei. E falei com Zubi, que me tratou de forma extraordinária. Realmente lamento o que aconteceu com ele; essa Liga também é sua. No dia em que eu falei que ia embora, ele me acompanhou até minha casa e começou a me fazer pensar que também ainda não tinha chegado minha hora. Ainda bem que decidi ficar.
P. Ainda se lembra do dia em que veio ao Barça para passar no teste?
R. Claro! Meu pai no carro me dizendo: “Abre bem os olhos e escuta: essa oportunidade não é para qualquer um”. Eu já estava marcado, mas não sabia. E o que fiz foi aprender, aprender e aprender. Neste clube me ensinaram a jogar e a ser pessoa. E na família também, claro. Devo tudo ao Barça. Fui muito feliz aqui. Nunca teria imaginado.
P. Conhece alguém mais culé que você?
R. Sim, claro, minha mãe.
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