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Líbia, vítima do sonho europeu

O país está encurralado entre as exigências da UE e a chegada de milhares de pessoas

Imigrantes em um centro nos arredores de Misrata, em março.Foto: reuters_live | Vídeo: GORAN TOMASEVIC (REUTERS)

“Destruímos o sonho dessas pobres pessoas”, lamenta um oficial da guarda costeira da Líbia. O navio Mergheb acaba de chegar ao porto de Misrata com 475 imigrantes subsaarianos resgatados horas antes em alto mar. “Estavam a ponto de alcançar o objetivo, depois de enormes sacrifícios, e tiveram que ser detidos porque é nossa obrigação”, acrescenta o marinheiro enquanto ajuda os passageiros a descer do barco ancorado.

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Seu chefe, o coronel Reda Issa, parece tão angustiado como seus subordinados, mas prefere destacar que a postura de seu país desmente as acusações da Europa sobre uma suposta falta de colaboração diante da tragédia dos boat people. Desde janeiro, cerca de 1.800 imigrantes subsaarianos, sírios ou de Bangladesh morreram no Mediterrâneo oriental, número vinte vezes superior do que no ano anterior. Outros 40.000, segundo dados das Nações Unidas, conseguiram chegar à costa europeia, Itália ou Malta, a maioria depois de receber auxílio por embarcações militares ou mercantes. E muitos mais na Líbia —entre 100.000 e 200.000, segundo fontes— estão esperando um barco de pesca, um bote inflável, uma balsa, qualquer coisa que flutue para percorrer os 300 quilômetros que os separam da ilha italiana de Lampedusa e do sonho europeu.

A imigração clandestina nos afeta tanto quanto à Europa”, afirma o coronel Issa. “Precisamos de ajuda para resolver o problema, da mesma maneira que a Itália não pode enfrentar esta situação sozinha”. Para o Governo de Trípoli, a solução não envolveria uma resposta militar e a destruição dos barcos de pesca, como propõem alguns em Bruxelas, mas a criação de acampamentos nas fronteiras ao sul da Líbia, sob a responsabilidade da ONU e da União Europeia, para identificar os que são realmente refugiados e organizar as migrações.

A viagem de Mamadou

O comandante do serviço da guarda costeira acaba de voltar de uma conferência euro-africana sobre imigração irregular organizada pela Espanha nas ilhas Canárias, onde pôde explicar os esforços realizados pela Líbia em um contexto extremamente difícil de guerra civil. Aproveitou a conferência para se queixar da atitude pouco amistosa da Itália, que se recusa a devolver os quatro navios da guarda costeira que a Líbia enviou em 2012, para que fossem consertados em seus estaleiros.

“Os barcos estão prontos desde o ano passado, mas os italianos dizem que não vão entregá-los enquanto a situação política na Líbia não estiver resolvida e não tivermos um Governo de unidade nacional”, diz o coronel Issa, indignado. A Itália, como os demais países europeus, não reconhece o Governo que controla a parte oeste da Líbia, de onde sai a imensa maioria dos migrantes. “Não podemos esperar mais porque se trata de uma emergência humanitária, é preciso salvar as pessoas que estão se afogando no mar. Além disso, é uma questão de segurança para nós e para a Europa, já que não temos os meios de deter os terroristas que podem escapar entre a multidão”.

Enquanto isso, os serviços de resgate percorrem os 450 quilômetros da costa entre Sirte e Trípoli com seus dois únicos barcos, bem menores e mais antigos do que os quatro retidos na Itália. No entanto, quando saem para uma operação de busca e captura, a guarda costeira costuma voltar com o convés repleto de migrantes, especialmente se navegam perto de Garabuli, uma pequena cidade pesqueira ao leste de Trípoli.

A Itália ainda não devolveu os quatro navios da guarda costeira que foram enviados para reparos

“Saímos à noite de Garabuli”, conta um senegalês que foi resgatado pelo Mergheb. Chama-se Mamadou Lamine, tem 30 anos e é pai de duas crianças, de 3 e 5 anos. Os deixou com a mãe e os avós em sua cidade, Sédhiou, às margens do rio Casamance, um lugar de sonho para os turistas europeus. O jovem, que prefere ser chamado de Mohamed e aprendeu árabe na mesquita, realizou o clássico périplo dos subsaarianos que fogem da pobreza e do desemprego, sobretudo em seus países. Até agora, as coisas estavam indo muito bem, sobretudo ao comparar com as histórias dramáticas contadas pelos somalis ou eritreus, frequentemente vítimas de sequestros e torturas para obrigar as famílias a pagar pelos resgates.

“Foi uma viagem de dois meses de Senegal a Trípoli”, relata em francês, com muita serenidade apesar de ter fracassado em seu projeto de se unir a seus irmãos que moram na França há 10 anos. Saiu com um grupo de 60 compatriotas para percorrer cerca de 3.000 quilômetros, em grande parte por zonas desertas. “Trocamos de caminhões cinco vezes e a viagem me custou 800 euros [2.700 reais], mas nos assaltaram várias vezes e tivemos que pagar em todas as fronteiras para que nos deixassem passar.” Quando chegou à Líbia, trabalhou quase dois meses de pedreiro para financiar a última etapa da viagem rumo à Itália.

1.700 reais pela travessia

Teve que pagar 1.000 dinares (1.700 reais) pelo barco. “Paguei a um senegalês, que era o chefe do nosso grupo. Fomos levados à noite em um caminhão fechado até Garabuli, a uma hora de Trípoli. Lá, nos juntaram com 160 senegaleses e gambianos e nos colocaram em uma casa grande”. Passaram uma semana em meio às oliveiras e figueiras, à espera das instruções dos líbios encarregados da logística. O sinal verde chegou com a lua cheia.

“Passamos por uma praia de areia antes de chegar a um pequeno porto de pesca. Tivemos que subir em um barco de borracha, cem pessoas muito apertadas. Disseram que não nos movêssemos para nossa própria segurança”. Levaram seus celulares e deram ao chefe do grupo um GPS e um thuraya (telefone via satélite) com o número da guarda costeira italiana para pedir auxílio quando saíssem das águas territoriais da Líbia.

Os traficantes apenas fornecem gasolina para um terço da viagem pelo Mediterrâneo

Por volta das 8h da manhã, pouco antes de entrar em águas internacionais, foram vistos pelos tripulantes do Mergheb, que havia resgatado em alto mar quatro barcos de borracha do mesmo tipo e voltava ao porto de Misrata. “Tentamos chamar os italianos com o thuraya, mas não funcionava”, conta Mamadou, enquanto se dirige ao ônibus que vai levá-lo a um dos 16 centros de detenção do país onde se amontoam cerca de 7.000 migrantes em situação irregular, à espera de uma eventual repatriação aos seus países de origem.

Desespero em terra

A resignação de Mamadou e de seus companheiros contrasta com o desespero de 30 mulheres sentadas na doca, algumas com crianças nos braços. “Estou grávida de três meses e quero ir à Europa para dar de comer ao meu filho. Não me importa arriscar minha vida na tentativa. Ajudem-me! Não queremos voltar a nossos países”, grita Amina em inglês, que diz ser de Gana. Várias mulheres começaram a chorar e a se lamentar diante do olhar dos enfermeiros da organização Crescente Vermelho que chegaram com uma ambulância para atendê-las.

Anoitece no porto de Misrata. Nesse mesmo momento, centenas de homens e mulheres estão se preparando em segredo para embarcar num bote de borracha em Garabuli, Sabratha ou Zuara. Esta noite a tripulação da guarda costeira está descansando. A via está livre e o mar, tranquilo. Não haverá ninguém para detê-los na perigosa viagem. Se a sorte os acompanhar, serão resgatados por um barco da Operação Tritão, a missão de vigilância europeia que patrulha o Mediterrâneo. Mas se a gasolina acabar antes —os traficantes fornecem combustível para um percurso de apenas 100 quilômetros, um terço da distância entre a Líbia e a Itália— e ficarem à deriva, então aumentarão as altas e imprecisas estatísticas dos “desaparecidos” em alto mar.

“Tive que recusar 600. Aqui já não cabe um alfinete”

O diretor e os 1.107 detidos de 17 nacionalidades compartilham a mesma sensação de opressão pela falta de espaço e de recursos no centro de detenção para migrantes de Misrata, o maior do país. “Os Governos europeus e várias ONGs se comprometeram em nos ajudar para atender o número cada vez maior de estrangeiros que prendemos na tentativa de chegar à Itália, mas não recebemos nada até agora”, reclama o diretor do centro, Abdelmenam Ali Hawerak, sobrecarregado pela tarefa diária de conseguir alimentos, água e medicamentos para tantos homens e mulheres em um país onde o Estado está paralisado pela guerra civil.

“Recusei 600 pessoas que foram capturadas no sul do país, onde não há lugar para alojá-los. Tive que dizer não”, conta o diretor. “Porque aqui já não cabe um alfinete”. Subsaarianos e bengaleses se amontoam nos corredores do edifício, tão apertados que não há espaço para colocar colchões. Dormem no chão. Apenas as mulheres, várias com filhos pequenos, têm certa privacidade em um quarto grande.

“Estamos adaptando um edifício vizinho para melhorar as condições. Estamos fazendo isso com a ajuda financeira de algumas famílias acomodadas em Misrata, que também nos apoiam com alimentos”, explica o diretor. Para comer, hoje há espaguete com frango, que está sendo preparado em gigantescas panelas em uma cozinha improvisada na entrada do edifício.

Apenas um médico, fornecido pelas Nações Unidas, atende a população em um contêiner com ar condicionado onde não dispõe de cama para examinar os pacientes. Os casos mais graves são enviados a um hospital de Trípoli. O desespero dos detidos é tamanho que, quando uma embaixada se interessa pelos cidadãos presos nesse lugar, quase todos se candidatam aos planos de repatriação a seus países de origem. É o caso dos senegaleses e dos gambianos, que recebem apoio do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICR) e da Organização Internacional para as Migrações (OIM) para a emissão de documentos de viagem.

“Fizemos uma primeira repatriação de 400 senegaleses em março”, afirma o espanhol Félix Casanova, diretor adjunto do CICR na Líbia. “Foi bem-sucedida e preparamos uma segunda com 180 senegaleses e 60 gambianos. O importante é que seja voluntário, e quase todos querem ir.”

Por outro lado, somalis e eritreus —os sírios deixaram de passar pela Líbia—, que fogem da guerra ou da ditadura, estão encurralados e não vão desistir da tentativa de chegar à Europa, onde conseguem com certa facilidade o status de refugiados políticos.

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