Quem nunca mentiu, que atire o primeiro HD
Estreia filme feito a partir dos arquivos de um 'gringo' preso no Brasil por amor à mentira
Se um amigo lhe entregasse o HD do computador dele, confiando vários gigas de informação íntima sobre seu passado, você faria um filme? Pois deveria. Se der certo, você terá nas mãos algo como A vida privada dos hipopótamos, documentário de Maíra Bühler e Matias Mariani que estreou nesta quinta-feira (7 de maio) em salas brasileiras.
A obra, um sucesso de vários festivais de cinema, narra a história de Christopher Kirk, um norte-americano que deixa Seattle para seguir os rastros de hipopótamos abandonados por Pablo Escobar na Colômbia e termina preso no Brasil por tráfico de drogas – vivendo, de quebra, um amor obsessivo por uma colombiana misteriosa. Longe de se limitar a essa sinopse, ele usa alternativas espertas à tradicional entrevista para compor o relato de não-ficção, sendo a principal delas o conteúdo do tal disco duro.
É como uma cebola, e das apetitosas. Na camada superficial está a trajetória de Chris, um nerd solteiro e disponível, cansado da vida pacata de classe média nos Estados Unidos e que se vê propenso a lançar-se em uma aventura sul-americana. No meio, fica o desenrolar do seu impulso, da coragem de largar seus compromissos em casa para viver uma relação amorosa com a “bela e exótica” colombiana que conhece em Bogotá, obcecado que estava por meios de vida alternativos ao seu, mais divertidos, e pela mentira.
No núcleo da cebola está justamente ela: a mentira. Sua adorada, que aparece ao longo do filme sob a inicial V, revela-se para ele uma mentirosa competente, escondendo sistematicamente fatos de sua vida pessoal e demonstrando estar envolvida em esquemas ilícitos de conseguir dinheiro. Chris, interessado na arte da trapaça, como ele mesmo se declara, deixa-se então levar de coração e mente aos labirintos de V – provando ser ele, no fim, o grande trapaceiro. Por isso é que A vida privada dos hipopótamos, mais que um documentário, é um perfeito “documentira”, como definem alguns.
“Tem várias coisas que se espera de um doc que o filme não entrega”, explica Matias Mariani, codiretor. “Nosso interesse não era cair na dualidade verdade versus mentira, ainda que a história de Chris nos deixe pensando nisso”. De fato, é instigante para o espectador acompanhar a narrativa e ficar pensando no próximo movimento do protagonista. Mas, como costuma acontecer a bordo de um bom filme, vai-se além.
A montagem, conta Mariani, foi o grande desafio criativo do projeto. A participação da montadora Luísa Marques, premiada no último Festival do Rio por esse trabalho, “foi superimportante”. “O trabalho na ilha de edição era de criação, tinha um 'quê' de filmagem mesmo, para criar uma narrativa contada do ponto de vista de um HD”, diz, referindo-se a momentos em que a navegação por fotos, e-mails, vídeos e chats do personagem principal foi filmada com o objetivo de narrar quem ele é e sua trajetória. Nesse sentido, os diretores (e o fazer cinema em si) entram para a narração, assim como o próprio ambiente virtual, que ajuda a borrar os limites entre documentário e ficção.
Chris Kirk, cujo desfecho de vida está no filme para quem quiser ver, assistiu ao trabalho da dupla e não ficou totalmente satisfeito no início, como era de se esperar. Ele, que se sentia o único dono de sua narrativa, percebeu que outros podem se apropriar de sua vida e embarcar na arte da mentira. Afinal, o que é a verdade, sobretudo em primeira pessoa?
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